Lembro-me de ser jornalista há muito pouco tempo na Rádio Renascença e de ter dado a notícia da queda do avião que transportava o presidente do Ruanda. O suposto acidente, que afinal foi um atentado, resultou poucos dias mais tarde no início de uma guerra civil que causou um dos maiores e mais vergonhosos genocídios do século passado. Anos depois, vi no cinema o filme Hotel Ruanda com o relato do que então se passou. Quando as luzes da sala de cinema se acenderam não pude deixar de pensar na superficialidade com que eu, jornalista contemporânea àquela história de horror, fui dando notícias sobre o que lá se passava. Até hoje me pesa a consciência, não porque tivesse conseguido mudar o curso dos acontecimentos, mas pela banalidade com que encarei a situação só porque estava longe. Sempre pensei que ao menos eu, que era jornalista, devia ter encarado aquela guerra e os relatos que de lá chegavam de forma diferente.

Nos últimos dias, sobretudo depois das imagens que nos chegaram de Bucha, Irpin e de outras localidades nos arredores de Kiev, voltei a ter o mesmo sentimento. Já não sou jornalista, mas sou uma cidadã europeia. Da mesma Europa onde se praticaram crimes de guerra hediondos e cobardes. A diferença é que agora, ao contrário do que aconteceu no passado, os acontecimentos entram-nos em casa em tempo real. Escreveu Sofia de Mello Breyner: “Vemos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar”.

Os tempos modernos são férteis em comoções generalizadas da opinião pública que age em conformidade, procurando mostrar-se solidária de várias formas com as vítimas de situações de catástrofe. São gestos valiosos e que fazem a diferença a muitas vidas. Mas as imagens dos últimos dias pedem mais do que esta solidariedade. Pedem que as mesmas opiniões públicas europeias exijam aos seus governos uma nova atitude.

Imagino que não seja fácil à Alemanha e a outros países europeus prescindirem do fornecimento de gás e petróleo russos. Provavelmente essa decisão colocará a Europa numa nova crise profunda, com necessidade de recurso a racionamentos próprios de uma guerra. Mas é numa guerra que estamos. Não é só a Ucrânia que está a ser violentamente atacada com a invasão russa. É todo o mundo ocidental, em particular a União Europeia. Nenhum negócio se justifica com um país que tortura e massacra cidadãos indefesos, como está a acontecer na Ucrânia. Não são relatos difusos. Vimos todos com os nossos olhos.

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Ainda hoje achamos incompreensível o comportamento de alguns povos europeus durante a Segunda Guerra Mundial. Colaboracionista é um adjetivo que ainda perdura na nossa memória coletiva, apesar das décadas decorridas. Na altura, alguns podiam desculpar-se com a ideia de que não sabiam o que estava a acontecer. Agora sabemos todos. Não tirarmos consequências em função do que vimos é transformar toda a União Europeia, governantes e governados, em colaboracionistas.

Ninguém sabe o que pode acontecer se o Ocidente endurecer posições. Há riscos grandes? Há. Mas fazer de conta que esta guerra não nos diz respeito não é seguramente a melhor estratégia para lidar com o tirano russo. A verdade é que, depois das imagens dos últimos dias, estamos todos em guerra. Como bem notou Volodymyr Zelensky quando esta segunda-feira visitou Bucha: “Convido a senhora Merkel e o senhor Sarkozy a visitar Bucha e a ver aquilo a que uma política de cedências conduziu ao longo dos últimos 14 anos. Para verem com os seus próprios olhos os homens e mulheres ucranianos torturados.

Por mais que queiramos resistir à ideia, o mundo mudou. Não podemos ficar indiferentes ao que se está a passar porque a indiferença vai matar-nos e desta vez ninguém pode dizer que não sabia.

PS: Acho extraordinário que o Governo português recém-empossado faça discursos, apresente um programa de governo e se prepare para apresentar um orçamento como se o mundo não tivesse mudado com esta guerra no coração da Europa. Não sou economista, mas não é preciso sê-lo para perceber que a escalada da inflação, o aumento dos juros e a nossa pesada dívida externa são uma mistura explosiva que não vai e não está a deixar-nos na mesma. Os tempos que aí vêm não se compadecem com discursos otimistas e ingénuos. O país devia estar a prevenir o embate dos efeitos da guerra na nossa economia, começando por não criar a ilusão de que estamos protegidos aqui neste cantinho da Europa.