André Ventura fez uma declaração ignóbil, desprezível e inequivocamente racista. É só isto. E isto não tem defesa, debate ou contra-argumentação possível. Ao reagir a uma proposta do partido Livre, dizendo que Joacine deveria ser “devolvida ao seu país de origem”, André Ventura tomou uma posição que é muito mais do que uma brejeirice de café – deu uma resposta política e racista a uma proposta partidária da qual discorda. E fê-lo em termos que não terão retorno. Ele, que tantas vezes se defendeu de acusações de racismo por (deliberadas) ambiguidades discursivas, desta vez foi explícito e não deixou qualquer margem para interpretações: o que disse sobre Joacine Katar Moreira é uma gravíssima declaração racista que contamina a política nacional. Passou uma linha vermelha. Só não vê quem não quer.

Dir-me-ão que isto é tão evidente que quase nem é preciso dizê-lo. Lamento, mas é mesmo preciso dizê-lo. Estes tempos de trincheiras lamacentas não lidam bem com as evidências e há cada vez mais quem se refugie em equivalências morais. Sim, a proposta em causa do Livre está construída em termos que são inconsistentes e errados. Sim, a deputada Joacine Katar Moreira tem uma visão radicalizada e maniqueísta, só vê a preto e branco, e encontra sucessivamente no racismo a explicação para a discordância face às suas posições. Sim, a esquerda tem a língua afiada para qualificar de fascista, de racista e de extremista todos aqueles que lhe fazem frente. Mas isso não justifica o resto. Não, não importa sequer discutir e comparar o que disse Joacine Katar Moreira ou o que propôs: não há nada que justifique as declarações de André Ventura, nem há nada que o resgate do buraco onde se enfiou. O radicalismo não se combate radicalizando-nos, abdicando dos nossos valores e ultrapassando as linhas vermelhas que estabelecemos para nós próprios — não vale tudo para agredir o adversário.

Seria fácil circunscrever o caso a André Ventura e ao Chega, uma pequeníssima minoria. Mas a reflexão tem de ir mais longe, nomeadamente àqueles à direita disponíveis para abraçar ou mesmo forjar alianças com este novo partido. O racismo é um ataque aos princípios de dignidade da pessoa, certo, mas é também um atentado aos ideais liberais que fundaram as repúblicas ocidentais em que acreditamos — onde todos são cidadãos de plenos direitos, onde todos assumem os seus deveres de cidadania e onde todos desfrutam de liberdade para prosseguir uma vida boa e de acordo com as suas ambições e potencial. São esses os pilares ideológicos de uma direita europeísta, cosmopolita e defensora das liberdades. E o respeito por esses pilares tornou-se irremediavelmente inconciliável com uma eventual tolerância ao Chega e a André Ventura, cujo projecto político é iliberal e intolerante.

Dito de forma ainda mais clara: seja por que razão for (desespero, raiva ou convicção), os que à direita dão a mão ao Chega para o normalizar estão simultaneamente a passar para o lado de lá e a abdicar da identidade republicana da direita, fundada no pensamento liberal de Montesquieu, Tocqueville, Mill, Burke ou Hayek. Estão a pôr os pés num terreno contraditório e movediço. Podem consolar-se chamando-lhe “nova direita” ou alegar que é aí que está a verdadeira incarnação das políticas da direita. Podem até destratar quem os coloca à margem qualificando-os de “direita cobarde” ou alimentando insinuações de corrupção moral na cedência à esquerda. O que não podem é disfarçar que o nacionalismo autoritário que os define é profundamente iliberal, ameaçador das liberdades e, como tal, muito próximo de ser apenas o outro lado do espelho dos extremismos existentes à esquerda.

Entendamo-nos: colocar o Chega para lá das linhas vermelhas não equivale a dizer que André Ventura, deputado único do Chega, deva ser ostracizado do debate político e remetido a uma espécie de jaula parlamentar, como se encaixam os hooligans nos estádios de futebol. Isso é o que pede a esquerda, sempre furiosa na sua tentação de silenciar a discordância. Seria um erro, um tiro no pé, porque seria igualmente atentatório contra os valores republicanos. André Ventura foi escolhido por eleitores em eleições livres e o seu mandato de representação política tem exactamente a mesma dignidade que a de todos os outros deputados. Por isso, delimitar a sua acção seria muito pior do que apenas fazer dele um mártir, reforçando a sua estratégia de afirmação política: seria ceder nos nossos valores e derrotarmo-nos a nós próprios. Portanto, o que se pode desejar é tão simples quanto difícil: que André Ventura continue a expressar-se em total liberdade e que todos aqueles que acreditam nas liberdades de numa sociedade plural o deixem a falar sozinho. Se assim não for, e se perdurar o actual deslumbramento com o seu movimento político, esse deslumbramento será a semente que apodrecerá a direita portuguesa.

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