Nome: Orlando
Autor: Virginia Woolf
Editor: Relógio d’Água
Páginas: 232
Preço: 7,50€
Quando, logo no princípio de Orlando, entra em cena Sasha, a sobrinha do embaixador moscovita, é-nos dito que a corte londrina se indignava sempre que a via, na companhia de Orlando, “esgueirar-se por baixo do cordão de seda que separava o recinto real da zona pública do rio, e desaparecer no meio da multidão do vulgo” (página 30). Este incómodo sentido pela elite inglesa ao ver alguém atravessar assim a muralha que erguera para se distinguir artificialmente do povo é em tudo semelhante àquele que sentimos ao lermos o romance biográfico de Virginia Woolf agora re-editado pela Relógio d’Água. Em Orlando, Woolf procura destruir todas as fronteiras que nos habituámos a prezar ao narrar a vida de uma personagem que, tal como Sasha, se esgueira por debaixo do cordão e, como se nada fosse, passa de um sexo para o outro ou do século XVI para o século XX, deixando-nos desconfortáveis ao vermos ruir a construção do mundo que fizéramos, cujos muros julgávamos indestrutíveis.
Virginia Woolf parece partir sempre de uma posição dogmática forte para depois a desconstruir totalmente. O romance abre com o jovem Orlando a golpear com uma espada uma cabeça de mouro suspensa das vigas do telhado de sua casa, sonhando com expedições futuras pelo Norte de África, para assim se afirmar desde logo a virilidade do protagonista da história. A escritora não deixa, aliás, margem para qualquer especulação ou ambiguidade ao começar o romance precisamente desta forma: “Ele — pois não poderia haver dúvidas quanto ao seu sexo, embora a moda da época contribuísse até certo ponto para o dissimular” (página 10). No entanto, poucas páginas depois, o mesmo Orlando terminará um noivado com uma rapariga por esta ter chicoteado à sua frente um cão, fazendo nascer à nossa frente uma certa sensibilidade, certamente feminina, de que até aí não suspeitávamos e que nos impede de compreender a verdadeira natureza do jovem.
Esta oscilação entre comportamentos femininos e masculinos vai-se repetir inúmeras vezes, e não apenas com Orlando, fazendo abanar até ruir o muro que separa o que designamos como ‘comportamentos masculinos’ daquilo que designamos por ‘comportamentos femininos’. Se Orlando (e até o nome do protagonista parece ser uma das inúmeras tentativas de construir uma história da literatura dentro da história da vida de Orlando, ao ser ao mesmo tempo uma referência à obra maior de Ariosto, à Chanson de Roland e à ambiguidade sexual da personagem principal de As You Like It, que se apaixona por Rosalind antes ainda de saber que esta era afinal uma mulher) aguenta a bebida de forma estoica, também chora ao mínimo pretexto, se conhece como poucos as colheitas, não tem a mínima atração pelo poder, se gosta de jogos de azar, não suporta ver animais em sofrimento, chegando-se desta forma ao momento em que (no que parece ser uma alusão clara à definição proustiana de homossexualidade) é postulada a teoria geral subjacente ao livro: “Diferentes como são, os sexos misturam-se. Em cada ser humano ocorre uma vacilação entre um e outro sexo, e muitas vezes são apenas as roupas que preservam a aparência masculina ou feminina, quando por baixo delas o sexo é precisamente o oposto do que está por cima” (página 125). No entanto, mesmo esta teoria é depois gradualmente desconstruída e desinsuflada quando o jovem elisabetano Orlando se transforma numa mulher oitocentista.
[a adaptação de “Orlando” ao cinema, com Tilda Swinton e Billy Zane, realizada por Sally Potter (1992)]
A compreensão do sexo a que agora pertence é feita por Orlando de fora para dentro e não, como seria de esperar caso as diferenças entre os sexos fossem tão claras e estanques como a teoria acima citada parece sugerir, de dentro para fora. Orlando percebe o que é ser mulher não através de uma súbita revelação gerada espontaneamente por esta mudança drástica, mas antes a partir da forma como é vista pelos que a rodeiam. A urgente necessidade de obediência, pureza e castidade das mulheres não é afinal intrínseca ao seu sexo, mas apenas uma maneira de evitar que os homens caiam de mastros altos ao verem as suas pernas. Ao compreender que as diferenças entre os sexos não são necessárias, sendo antes geradas por convenções sociais (que levam a que abandone, aliás de forma algo confusa, a sua preferência sexual por mulheres ao transformar-se numa), Orlando irá passar a encarar estas diferenças como um jogo cujas regras são tão peculiares quanto aleatórias, como vemos, por exemplo, quando um homem se perde de amores por si e é dito:
Que os homens choravam tão frequentemente e tão sem razão como as mulheres, já Orlando o sabia da sua experiência de homem; mas começava a perceber que as mulheres deviam mostrar-se chocadas quando os homens manifestam emoção na sua presença, e assim, chocada se mostrou.”
Todavia, esta obediência às regras de um jogo que, nunca sendo enunciadas, são sempre previamente conhecidas parece pautar também as interações sociais das personagens, uma vez que todas têm uma consciência sempre clara de que essa obediência é uma questão de sobrevivência. É este jogo que parece estar a ser jogado quando somos informados de que nos salões do século XVIII são proibidos os ditos espirituosos, já que estes tinham o poder de arrasar “as conversas banais, como uma bala de canhão esmaga violetas e margaridas” (página 132).
É também precisamente a esse manual de sobrevivência que Greene, o poeta profissional do romance, se parece agarrar quando no século XVII afirma que “a arte da poesia estava morta na Inglaterra” (página 60) para, mais tarde, em pleno século XIX, argumentar que “os tempos áureos da literatura já passaram. Marlowe, Shakespeare, Ben Jonson — esses sim, eram gigantes” (página 184), tentando desta forma convencer-se de que a sua incompetência literária é fruto de ter nascido no tempo errado e não de um defeito puramente seu.
Orlando é, então, mais do que uma biografia fantasiosa de uma personagem diferente e do que uma tentativa bem-sucedida de parodiar a história da literatura, uma postulação de uma visão do mundo de Virginia Woolf que foge a qualquer redução das pessoas a conceitos estanques e simples, sendo antes cada pessoa vista como uma multidão, como um “estranho misto de muitos humores” (página 50). Orlando só pode, portanto, ser descrito como “o rapaz que derrubou a cabeça do negro; o rapaz que tornou a suspendê-la do teto; o rapaz que se sentou no alto do monte; o rapaz que viu o poeta; o rapaz que ofereceu à Rainha a taça de água de rosas; (…) o jovem que se enamorou de Sasha; ou o cortesão; ou o embaixador; ou o soldado; ou o viajante; ou (…) a mulher; a cigana; a grande dama; a eremita; a rapariga apaixonada pela vida; a padroeira das Letras”. Porque, para Woolf, todos nós, fazendo uso das sábias palavras de Prince, não somos homens nem mulheres, mas algo que nunca compreenderemos.
João Pedro Vala é aluno de doutoramento do Programa em Teoria da Literatura da Universidade de Lisboa.