Nem todos se recordam do nome de Salif Keita. E alguns até poderão lá chegar mais pelas ligações familiares do que outra coisa: é tio dos médios Seydou Keita (que passou por Marselha, Sevilha, Valencia, Roma ou Barcelona, onde se sagrou duas vezes campeão europeu) e Mohamed Sissoko (que se encontra agora nos mexicanos do Atlético San Luís, depois de ter jogado no Valencia, no Liverpool, na Juventus ou no PSG). No entanto, o ex-avançado maliano é um dos jogadores marcantes da história do Sporting. E porque falamos agora dele? Porque a única vez em que os leões defrontaram um conjunto checo nas competições europeias coincidiu com a última partida europeia do jogador que em 1979 rumaria aos Estados Unidos.

Sporting vai defrontar Viktoria Plzen nos oitavos de final da Liga Europa

Agora, nos oitavos de final da Liga Europa, os verde e brancos vão defrontar o Viktoria Plzen (primeiro jogo em Alvalade, a 8 de março); em 1978, o adversário foi o Banik Ostrava, na primeira eliminatória da extinta Taça dos Vencedores das Taças. Foi na Rep. Checa, há 40 anos, que Keita realizou o derradeiro encontro europeu. Que os leões perderam, por 1-0.

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Não existem grandes memórias para o conjunto português dessa eliminatória, que teve duas derrotas pela margem mínima (Antolik marcou em Alvalade, Licka decidiu na então Checoslováquia). Aliás, as memórias que existem, extra resultados, são até as piores: Jordão, um dos melhores avançados portugueses nos anos 70 e 80, falhou o primeiro jogo por estar ainda a recuperar de uma fratura no perónio e o segundo por ter sofrido nova lesão grave na mesma zona, em Famalicão. Milorad Pavic, treinador que tinha sido contratado no início dessa época depois de já ter sido campeão pelo Benfica em 1975, pouco ou nada podia fazer para inverter uma temporada onde tudo acabaria por correr mal à equipa verde e branca. Ainda assim, e apesar de ter saído em abril, Keita foi o melhor marcador leonino no Campeonato a par de Manuel Fernandes (dez golos).

Mais do que os 33 golos em 78 jogos, Keita deixou um legado. No Sporting como noutros países europeus por onde passou. Um legado como futebolista mas, também, como profissional e homem. E basta recordar a sua chegada a Alvalade.

Nascido em Bamako, o avançado começou por jogar em dois clubes malianos, o AS Real Bamako e o Stade Malien, antes de se transferir para a Europa, mais concretamente para França, aos 20 anos. O acordo com o Saint-Étienne ficou selado e Keita abandonou o país de forma clandestina, como conta o blogue Les Legéndes du foot, um dia antes do que estava programado rumo a Paris. Chegado ao aeroporto de Orly, não tinha ninguém à espera. E pouco ou nada sabia do país. Vai daí, apanhou um táxi e deu ao motorista a única referência que estava na sua posse: estádio Geoffroy Guichard.

Mais de 500 quilómetros (e muito francos…) depois, chegou ao novo clube. E até pode ter sido de uma forma atribulada, mas a verdade é que valeu a pena: em cinco anos, ganhou três Campeonatos e duas Taças de França pelos verts. Tanto que, por essa altura, passou a ter uma música só para si que versava sobre o táxi que apanhou até Saint-Étienne. Mais: em 1971 foi o segundo melhor marcador na Europa com 42 golos em 40 jogos, apenas atrás do alemão Gerd Müller.

Em 1972, Keita, que já tinha sido considerado em 1970 Melhor Jogador Africano do Ano (na primeira vez que o troféu foi atribuído), consegue um dos melhores resultados pela seleção do Mali na Taça das Nações Africanas realizada nos Camarões, perdendo apenas na final com o Congo. Foi também nesse ano que trocou o Saint-Étienne pelo Marselha, numa aventura que durou apenas uma época: após uma reunião onde os dirigentes do novo clube lhe pediram para se naturalizar francês (na altura ainda havia limitação de estrangeiros), o avançado recusou-se a tomar essa iniciativa e mudou de ares, assinando pelos espanhóis do Valencia a troco de 27 milhões de pesetas.

A chegada à Liga também não foi fácil e teve de enfrentar o pior dos adversários ao longo da carreira: o racismo. “O Valencia tenta ir contratar alemães e acaba por chegar com um negro” foi um dos polémicos títulos escritos na altura, num episódio que se repetiria mais tarde com o companheiro de equipa (e internacional espanhol) Quino, como recordou o As. No entanto, e mesmo não conseguindo atingir o rendimento de França fruto das lesões, acabaria por ganhar a alcunha de “Pérola do Mali”, tendo como primeiro treinador no conjunto che Alfredo Di Stéfano, um dos melhores jogadores mundiais de sempre.

Em 1975, o jogador pediu uma reunião à equipa técnica e à direção para falar sobre o seu futuro. E admitiu que podia não estar a corresponder às expetativas criadas, mas também por ser utilizado como ponta-de-lança quando era um avançado habituado a ter alguém a seu lado e a jogar de forma mais móvel. Acabou por ficar mais uma temporada mas, em 1976, saiu mesmo numa decisão que não foi contestada pelo Valencia que já tinha um compromissos com Mario Kempes.

Hoje conseguimos saber quem está livre ou de saída de um clube porque, afinal, está tudo à distância de um clique. Mas convém recordar que nem sempre foi assim e, nos anos 70, a coisa era bem mais complicada. Como chegou então ao conhecimento do Sporting que havia esta “oportunidade de negócio”? Um dos filhos do presidente do Sporting, João Rocha, terá ouvido a notícia numa rádio quando estava em Madrid e foi assim que tudo começou até chegar a Lisboa.

Num episódio que recordamos aqui no Observador por altura das últimas eleições do clube, Keita, já perto dos 30, viu nos leões uma boa oportunidade para prosseguir a carreira na Europa e aceitou o desafio mas com duas condições: teria de ficar definido que não iria treinar à segunda-feira nem faria estágios nos jogos em casa. O presidente verde e branco disse que sim a tudo, mas o maliano não ficou convencido e colocou a decisão nos companheiros. Ninguém disse nada. E mais curioso: todos recordam o jogador, que formou um trio temível com Manuel Fernandes e Jordão (ainda assim insuficiente para conquistar mais do que uma Taça de Portugal, em 1978), como um dos maiores profissionais com quem já trabalharam, sendo quase sempre dos primeiros a chegar e dos últimos a sair dos treinos, onde ficava a treinar livres, remates e piques.

Em abril de 1979, como era quase “norma” na altura para trintões que se tivessem destacado na Europa, aceitou o convite dos New England Tea Men e mudou-se para os Estados Unidos, onde terminaria a carreira (sendo que jogou ainda nos Jacksonville Tea Men, em 1980/81, uma equipa do Campeonato de futebol indoor). Por lá ficou após arrumar as botas, formando-se em Gestão antes de regressar ao Mali para abrir o primeiro centro de futebol de formação do país (que entretanto passou a ser um dos maiores clubes locais). Entre várias funções desempenhadas daí para cá, destaque para a presidência da Federação de Futebol do Mali, como foi notícia na BBC, e para a função de ministro delegado do primeiro-ministro maliano.

Keita com o ex-avançado Roger Milla, antes de um jogo amigável em Paris de promoção do Mundial de 2010 (FRANCK FIFE/AFP/Getty Images)

A sua história acabou por inspirar um filme do guineense Cheik Doukouré chamado “A Bola de Ouro”, em 1994, dois anos antes de receber a Ordem de Mérito da FIFA. Mas, mais do que isso, Keita, hoje com 71 anos, ainda é recordado como um dos jogadores estrangeiros que melhor impressão deixou pela sua entrega, pelo seu profissionalismo e pelo respeito pela equipa e pelos companheiros. Há 40 anos, fez o último jogo na Europa. E na Rep. Checa, onde o Sporting agora regressa.