A revolução não aconteceu, como Marx tinha previsto, num país industrializado, antes na velha Rússia czarista onde 80% da população ainda trabalhava nos campos. Orlando Figes defende que sem compreender as raízes camponesas das revoltas que levaram, primeiro, à revolução frustrada de 1905, depois à revolução de fevereiro de 1917, que afastou o czar Nicolau II do poder, e por fim à Revolução de Outubro, não conseguimos perceber o que se passou há 100 anos nas ruas e palácios de Petrogrado, hoje São Petersburgo.
Nesta história que quis contar como se fosse uma tragédia grega, um drama de todo um povo, emergem contudo algumas figuras centrais, como Nicolau II, cujo imobilismo e inépcia permitiram o agudizar de sucessivas crises, e sobretudo Lenine, que percebeu que podia fazer uma revolução organizando um golpe de Estado e tomando o poder. “Foi esse o génio de Lenine, é esse o seu modelo de revolução”, explicou-nos o historiador numa entrevista em que também exploramos outros mistérios, como o da incapacidade de, em 1917, os socialistas moderados fazerem frente aos bolchevistas.
Numa Rússia onde o povo foi educado, gerações atrás de gerações, regimes atrás de regimes, à passividade, a prevalência atual de um autocrata como Putin também não surpreende Figes, para quem o erro do Ocidente foi sempre sobrestimar a força da Intelligentsia liberal. Por isso, se este “A Tragédia de um Povo” termina o seu relato em 1924, com a morte de Lenine, o destino da Rússia mesmo depois de 1991 continuou a ser, como ele diz, a “tragédia de um povo”.
Chamou a este livro “A Tragédia de um Povo”, mas ele é mais do que isso, é também sobre a tragédia de uma revolução.
Chamei-lhe “tragédia” tendo mais em conta o conceito grego e por isso procurei as raízes da tragédia russa, assim como o seu resultado, até porque o facto de terem sido as pessoas a tomar o controlo foi caótico. Por isso, nessa ótica, foi uma tragédia dramática.
O período que escolheu, que vai de 1891 a 1924, não se circunscreve a 1917, o ano das revoluções de Fevereiro e de Outubro. Porque é que escolheu tratar um intervalo de tempo tão dilatado?
A maioria das histórias da Revolução de Outubro centram-se em 1917 ou nos anos mais próximos, às vezes recuam até 1905, o ano da primeira crise revolucionária. Contudo, para entendermos a revolução como um evento social, para olharmos mais profundamente para as suas raízes, que estão no século XIX, pensei que 1891, o ano da grande fome, era uma boa referência. Foi uma crise que contribuiu para a politização da sociedade russa, que se sentiu motivada pelo sofrimento de tantos camponeses, na altura ainda servos, um sofrimento visto também como resultado das políticas de industrialização. Os intelectuais, os corpos profissionais, sentiram-se motivados para defenderem o povo. E defender o povo era desde sempre uma espécie de credo, alimentado por um sentimento de culpa que muitos tinham pelo facto de a sua civilização e o seu conforto estar construído sobre o sofrimento dos camponeses. Foi nessa sociedade politizada que se formou, pela primeira vez, uma oposição à monarquia. Os corpos profissionais, a sociedade letrada, os governos locais, as assembleias locais, todos começaram a exigir concessões políticas, representação legal, influência em políticas fundamentais, todos eles começaram a olhar de maneira diferente para os problemas e para a pobreza.
Muitos olharam para o marxismo pela primeira vez na década de 1890 e este acabou por se tornar uma espécie de crença regular, ensinado nas universidades e discutido nos círculos económicos. “O Capital” era muito mais lido em Petrogrado do que em Berlim ou em Londres. Este ambiente político contra o regime culminou num primeiro momento revolucionário em 1904, 1905, de que resultou num primeiro momento uma maior representação da oposição. É difícil perceber 1905 sem perceber o que começou em 1891, e não se pode compreender 1917 sem recuar a 1905.
Mesmo assim, porquê terminar 1924? É em 1924, com a morte de Lenine, que a revolução acaba?
O meu último livro abrange o tempo que vai de 1891 a 1991 (“Revolutionary Russia, 1891-1991: A History“), e é uma história da revolução mais completa, pois a verdade é que Estaline continuou a revolução de Lenine, Khrushchev pensou que estava a continuar a revolução de Lenine, e Gorbachev entrou num caminho revolucionário, sabemos nós agora, porque era certamente também ele um leninista. Contudo, quando eu estava a escrever “A Tragédia de um Povo”, há 20 anos, quando cheguei aos anos 20, ao fim da guerra civil, já tinha escrito 900 páginas. A morte de Lenine pareceu-me uma boa altura para parar…
Esta é a história de um povo ou a história dos seus líderes? De acordo com Marx, é o povo que faz a história, mas neste livro sentimos que de um lado estão os camponeses e do outro estão várias individualidades muito especiais cujos comportamentos são determinantes. Posso escolher duas: o Czar e Lenine. O que nos leva à questão de saber até que ponto a história poderia ter sido diferente sem eles – isto é, até que ponto é a tragédia dos camponeses, a tragédia no sentido grego de que fala, que determina o sentido dos acontecimentos. Por exemplo: se o avô de Nicolau II da Rússia, o czar Alexandre II, um czar reformista que estava a mudar o país, não tivesse sido assassinado em 1881 por anarquistas, as coisas poderiam ter sido diferentes? Ou a Rússia estava à caminho de um desastre de qualquer maneira?
De facto Nicolau II e Lenine são as duas figuras individuais cujas ações são absolutamente cruciais. Basicamente, a sua pergunta é se alguém poderia ter controlado o caos e não tenho a certeza se alguma vez quis responder a essa questão porque tenho a sensação de que ninguém pode controlar ou parar revoluções. Mas se Alexandre II não tivesse sido assassinado teria existido uma Constituição, porque até já havia um rascunho aprovado pelo czar. E isso teria consolidado uma evolução em direção a um Estado mais baseado na lei na Rússia, em que provavelmente teria emergido um parlamento com poderes efetivos. A Rússia teria, sem dúvida, continuado num caminho de aproximação cultural e política ao sistema europeu. Não teria sido de certeza o país mais democrático, mas não teria sido muito diferente daquilo que foi a Alemanha até aos anos 40.
Mesmo assim, o problema da pobreza, o problema da terra, acima de tudo, os problemas colocados pelas políticas industriais, que já começavam a surgir no tempo de Alexandre II, teriam criado enormes tensões num sistema político que teria de mudar muito mais do que aquilo que mesmo um czar reformista estaria preparado para aceitar. Mas claro que quando ele é assassinado e quando o Alexandre III começa a implementar as suas contra-reformas, que levam a Rússia para outra direção, numa espécie de regresso ao passado em que há mais poder policial, mais poder para os governantes, em que as atividades da oposição são reprimidas, essa oposição acaba por recorrer a formas mais violentas de se expressar. Ou seja, eu podia ter começado o livro em 1881, com o desaparecimento de Alexandre II, mas mesmo assim penso que é em 1891 que se dão os dramas sociais que despertam realmente a oposição entre uma parte das elites russas.
Finalmente, quando Nicolau II sobe ao trono, o seu entendimento rígido e a sua conceção limitada e medieval da autocracia, espelhado logo no seu primeiro discurso dirigido aos jovens, em que diz que vai governar unicamente de acordo com a sua consciência, fica claro que o último dos Romanov não dará qualquer importância à opinião pública. Nicolau II não quer realmente ser czar, acaba colocado numa posição de responsabilidade com a qual não é capaz de lidar até porque não era particularmente inteligente e, além disso, tem uma total falta de imaginação. Nicolau II não consegue sequer imaginar uma transição para algo que seja diferente daquilo que disse no juramento da coroação ou da tarefa que o pai desenhou para ele.
Governar assim, de forma tão antiga, torna-se cada vez mais complicado pois a comunicação social vai ganhando voz, começa a haver uma opinião pública com a qual ele não sabe lidar, os partidos políticos começam a aparecer, e há ainda uma classe média em desenvolvimento e à procura de mudança e representação. Todos lhe exigem um sistema mais liberal e ele simplesmente não sabe o que fazer. Pior ainda, pois os seus conselheiros só lhe dizem para voltar a pôr o relógio a andar para trás no tempo.
Depois da revolução de 1905, em que o Czar é obrigado a aceitar algumas reformas, a verdade é que estas acabam por cair. O bloqueio era tal que há quem defenda que mesmo que a I Guerra Mundial não tivesse existido, a revolução tinha inevitavelmente acontecido: a ignição é camponesa e a disposição dos camponeses é muito importante. É verdade que em Petrogrado, onde tudo vai acontecer, tínhamos trabalhadores e soldados, mas no livro sublinha que os soldados eram camponeses em uniforme e os trabalhadores industriais camponeses com uma geração de cidade. Estamos, portanto, perante uma revolução camponesa?
Absolutamente. Este livro é altamente influenciado pelo meu primeiro livro, que é sobre o papel dos camponeses na revolução (“Peasant Russia, Civil War: The Volga Countryside in Revolution“), e acho que para se estudar a história russa é preciso ter um grande entendimento sobre a sociedade camponesa. A Rússia era uma sociedade camponesa. 80% da população, pelo menos, pertencia à classe dos camponeses. Em 1914, a questão da terra permanece um ponto chave. Portanto, nenhuma reforma podia ser bem sucedida a não ser que resolvesse a questão da terra. As duas primeiras Dumas [o parlamento russo] convocadas depois de 1905 foram dissolvidas porque os principais partidos de oposição – não apenas os partidos de matriz social-democrata, mas também o partido liberal –, queriam levar avante uma reforma radical. Ora isto não era algo que os sectores mais conservadores e o Estado, na sua generalidade, estivessem preparados para permitir. Não tiveram força para fazer a reforma da propriedade da terra.
De acordo com o processo histórico previsto no marxismo, à revolução de fevereiro de 1917 devia ser a “revolução burguesa”, uma revolução democrática e liberal. Hoje interrogamo-nos sobre se essa revolução alguma vez teve hipótese de ser bem sucedida. Em Portugal esse é um tema que nos interessa especialmente, pois depois da nossa revolução de 1974 houve quem dissesse que até tínhamos o nosso Kerensky, Mário Soares, e que Álvaro Cunhal era o nosso Lenine. Não foi assim que se passou em Portugal, mas será que na Rússia de 1917 Kerensky alguma vez teve hipóteses de suceder?
Talvez a primeira grande diferença é que em Portugal a revolução não aconteceu por causa da I Grande Guerra. A Rússia de 1917 estava completamente desgastada pela guerra. Quando o Governo Provisório tomou o controlo, os seus membros têm noção de que são mesmo um Governo Provisório e que só estão ali para restaurar algum tipo de ordem e guiar o país até ao fim da guerra. Por isso, na sua conceção original, não era um governo revolucionário. Não era suposto colocarem em prática as grandes reformas sociais que o país queria, até porque era um governo formado por deputados moderados da Duma que queriam a restauração da ordem.
No início os líderes dos sovietes concordaram com este caminho porque achavam que era disso que o país precisava – isto é, da tal revolução democrática e burguesa que Marx tinha previsto, uma revolução que permitisse desenvolver os partidos, as organizações, os sindicatos, que os preparasse para uma revolução social mais profunda, que só podia ser feita numa esfera democrática. Todos os diferentes partidos socialistas pensavam assim, incluindo os bolcheviques. Até que Lenine aparece em Abril e muda tudo.
Mesmo assim, será que essa revolução de Fevereiro teve alguma hipótese?
Só teria tido hipótese se tivesse retirado o país da guerra.
E porque é não se retiraram da guerra?
Existiam alguns elementos, nomeadamente socialistas revolucionários de esquerda, que defendiam a saída da guerra, um conflito que até consideravam imperialista. Eram muito poucos mas acreditavam que a única maneira de tornar a revolução bem sucedida era sair da guerra e hoje sabemos que teria sido provavelmente a única coisa que poderia ter prevenido o completo colapso da autoridade.
A verdade é que, mesmo assim, era completamente inimaginável sair da guerra na primavera de 1917, e esse consenso não existia apenas no seio do Governo Provisório, estendia-se também ao soviete. Houve algumas vozes radicais que defendiam a saída, mas para os restantes líderes do soviete, com a exceção de Lenine, sair da guerra era inimaginável. Era algo em que nem sequer se pensava.
Mesmo assim, será que se se tivesse chegado à eleição da Assembleia Constituinte sem a revolução de Outubro, depois ainda seria possível desenvolver as reformas sociais necessárias para estabilizar um governo socialista e democrático genuíno?
Talvez, mas só se Kerensky não tivesse lançado uma desastrosa ofensiva militar. Foi um erro catastrófico, que apenas procurava o favor dos aliados e não considerou a exaustão do exército russo e o imenso sofrimento dos camponeses. Mas agora é fácil dizer estas coisas, na altura era complicadíssimo saber o que fazer. A verdade é que foi essa decisão de lançar a ofensiva que fez colapsar não só as autoridades militares como também o Governo Provisório.
Hoje em dia estamos habituados a ver políticos que não têm grande ideologia. Na Rússia de 1917 vemos que os principais agentes não tinham apenas uma ideologia, viviam de acordo com uma espécie de dogma. Um dos momentos mais interessantes e mais crítico é precisamente aquele em Lenine chega da Suíça e propõe algo que não estava nos livros. Nos livros marxistas lia-se que o caminho certo era fazer primeiro a revolução burguesa e depois a revolução do proletariado. E Lenine defende que se deve seguir diretamente para a revolução do proletariado. Nem os bolcheviques estavam preparados para isso…
… porque não estava nos livros. E todos os bolcheviques nessa altura, incluindo Estaline, concordavam com o apoio ao Governo Provisório. Concordavam com a continuação da guerra. É quando Lenine regressa que traz novas ideias, ideias que claramente estavam a ser desenvolvidas há algum tempo mas que eram novas até para os bolcheviques. E as ideias de Lenine eram ambíguas: não apoiar o governo, não apoiar a guerra, caminhar já em direção à revolução do proletariado, mas sem chegar ao ponto de sugerir uma insurreição imediata; aliás ele até tem de clarificar esse ponto.
O sucesso de Lenine decorre da sua habilidade de mobilizar os bolcheviques enquanto único partido a estar contra a guerra, enquanto o único partido a estar contra o Governo Provisório. Até então os bolcheviques tinham sido sempre um partido muito secreto, treinado na clandestinidade, mas com as novas liberdades toda a gente está politizada, toda a gente participa em reuniões, toda a gente está a juntar-se aos partidos. A proposta de Lenine é que faz a diferença dos bolcheviques, pois a população não consegue entender a ideologia marxista e não percebe sequer essa discussão sobre ter de haver primeiro uma revolução burguesa. Para quê? Porque é que vamos dar-lhes poder agora para o tirar depois? Porque não ter poder agora para fazermos aquilo que queremos: terras aos camponeses, fábricas aos trabalhadores e acabar com a guerra, já?
É essa a essência do bolchevismo com Lenine: o imediatismo, a ação, não apenas palavras e promessas, mas ação. E é o facto de estarem organizados para essa ação que vai fazer a diferença. Para as pessoas comuns que estavam cansadas da guerra e queriam o socialismo mas não entendiam a ideologia, nunca tinham lido Marx, as ideias de Lenine eram muito atrativas. É essa a sua genialidade.
Há outro momento muito importante, que é quando ele decide, de facto, fazer a revolução. Quando determina o momento do assalto ao Palácio de Inverno, explorando uma oportunidade porventura única.
Claro que sim. Depois do falhanço da insurgência de julho, ele pensa: “Estamos em guerra civil”. Defende a ideia de que se os bolchevistas não tomassem o poder, iriam ser os militares a tomar o poder. Nessa altura os bolcheviques não concordam com ele em ponto algum. Até Trotsky se posiciona contra a insurreição.
Mesmo assim o congresso dos sovietes foi convocado, os delegados começaram a chegar um pouco de toda a Rússia, até de França, com o fito de estabelecer o poder soviético, realizar o corte com os liberais e impor um governo socialista, mas Trotsky ainda continua cético. Na noite decisiva ele ainda diz ao Soviete de Petrogrado que vão sair guardas vermelhos para as ruas não para conquistar o poder, mas para defender a capital em caso de uma contra-revolução. A sua posição ainda é a de um combate defensivo numa altura em que Lenine insistia que era já para tomar o poder.
Podemos por isso dizer que, se Nicolau II é decisivo para queda do antigo regime, pela sua rigidez autocrática, em Outubro o que é decisivo é a decisão de Lenine de sair do esconderijo, lançar uma ofensiva e prender o Governo Provisório. É o momento absolutamente crucial. Porque o que significa é que, ao invés de um governo socialista de coligação baseado no soviete, que é sem dúvida o que teria acontecido sem a insurreição, os bolcheviques tomam o poder e os moderados cometem o erro fatal de sair do congresso em protesto, deixando a plataforma do soviete entregue aos seguidores de Lenine, para que reclamem vitória. E isso força os antigos camaradas socialistas a atuar como contra-revolucionários, porque se opõem à ação que eles tomaram.
É precisamente por tudo se ter decidido nessa noite e num golpe de mão que existem discussões infindáveis sobre se o que aconteceu foi uma revolução ou antes um “coup d’etat”. Porque o que aconteceu em Petrogrado foi mais um “coup d’etat” do que uma revolução. Mas tudo à volta é uma revolução.
É um “coup d’etat” na sua essência e não há qualquer dúvida sobre isso. Aliás é Trotsky que o admite em “A História da Revolução Russa“. Até na altura chamaram-lhe uma insurreição, não lhe chamaram uma revolução. Só estiveram cerca de 20 mil pessoas envolvidas e a maioria delas de uma forma passiva. Em si, foi mesmo um “coup d’etat”, um golpe de Estado. Mas um golpe baseado numa revolução social que se estava a desenvolver desde fevereiro, ou até antes. A questão importante é que foi primeiramente a revolução social que deu aos bolcheviques, indubitavelmente, os militantes que não tinham, assim como o apoio dos sectores decisivos entre os soldados e os operários radicalizados de Petrogrado.
Por outras palavras, é o que lhes permite ter uma fação bolchevique no exército com aqueles que estavam cansados da guerra, que não eram necessariamente bolcheviques mas que concordavam com as suas políticas destinadas a terminar com a guerra. Militantes que estavam preparados para sair à rua e defender o soviete. Da revolução social surgiu uma pequena mas significativa minoria de sentimento maximalista que os bolcheviques podiam mobilizar, como o fizeram noutras cidades.
Em segundo lugar, precisamos de ver a relação entre o “coup d’etat” e o congresso dos sovietes, pois os bolcheviques usaram o congresso para terem uma conceder legitimidade que de outra forma não teriam. Eles tomam de assalto o Comité Executivo do congresso dos sovietes precisamente em outubro – provavelmente teriam a maioria de qualquer maneira, mas não sabemos os números precisos – e aqueles que ficam do outro lado acabam por votar a favor das suas resoluções. Eles roubam as políticas da revolução social no que diz respeito às terras…
Mesmo assim acabariam por perder as eleições para a Assembleia Constituinte, que se realizaram em Dezembro de 1917. A partir daí a sua estratégia foi a de nunca deixar a Constituinte funcionar.
Existiram várias razões pelas quais Lenine autorizou as eleições para a Assembleia Constituinte mesmo depois de os bolcheviques já terem tomado o poder. Primeiro, muitos membros no partido achavam que o poder do soviete era razoável mas tinha de ser conjugado com o da Assembleia Constituinte. Na verdade poderia ter existido, sem a ditadura de Lenine, uma democracia que combinasse os dois. Acontece porém que os bolcheviques perdem essas eleições, têm apenas 10% dos votos, e nessa altura Lenine decide fechar a Assembleia.
Acho que é possível dizer que a maioria da população queria o poder dos sovietes, mas certamente não queria uma ditadura bolchevique, e os bolcheviques sabiam disso. A 16 de outubro, quando a decisão de avançar para a insurreição já está tomada mas ainda ninguém sabe quando ela será desencadeada, há uma reunião em que a direção bolchevique reúne e ouve as opiniões recolhidas pelos enviados a todo o país e todos dizem o mesmo: as pessoas vão sair à rua se os sovietes estiverem em risco mas não vão sair pelo partido. Era claro aquilo que se passava em outubro de 1917: havia apoio a um governo baseado nos sovietes, mas não havia apoio para um Estado bolchevique monopartidário. Este acaba por ser imposto de cima para baixo, depois da tomada do poder em Petrogrado.
A resistência aos bolcheviques está muito dividida, mas mesmo assim conduzirá a uma longa e sangrenta Guerra Civil. Porque é que os “brancos”, que no início até parecem ser mais fortes, acabam por perder a guerra para os “vermelhos”?
Os “brancos” têm inúmeros problemas que nunca conseguirão ultrapassar. Estão divididos, têm vários exércitos, vários movimentos, um no sul, outro na Sibéria, no norte há disputas entre diferentes membros porque, no fundo, não têm uma política clara, têm demasiados líderes, muitos oficiais e poucos soldados. Entre os “brancos” há elementos socialistas, outros são monárquicos que não se atrevem a defender a monarquia enquanto programa político, há também os liberais. São enormes diferenças que não permitem ter uma linha clara, uma ideologia demarcada, perceberem o que é essencial. Por exemplo: só reconhecem o problema da terra demasiado tarde. Em última análise, o problema deles é político. Não estão preparados para aceitar uma revolução camponesa, e como já vimos a revolução russa tem as suas raízes no problema camponês, no problema da posse da terra.
Sendo assim, torna-se muito complicado aos “brancos” mobilizar camponeses para a sua causa e os bolcheviques, que controlam o centro do país, que erguem a bandeira vermelha – que lhes dá muito do poder simbólico enquanto defensores da revolução –, conseguem, por muito que os camponeses se tenham revoltado contra eles, por muito que estes tenham odiado os comissários bolcheviques, ser os preferidos. Os camponentes, quando confrontados com a possibilidade de os “brancos” realmente chegarem ao poder, tendem a lutar pelos “vermelhos”. Passei muito tempo a estudar padrões de desertores no exército vermelho e verifiquei que os camponeses fugiam, especialmente na época das colheitas, levando as suas armas consigo, que os bolcheviques voltavam a mobilizá-los, num processo que bloqueou uma economia que assim estava constantemente a perder camponeses. Contudo o que descobri foi que em 1919, quando Denikin publica a “Diretiva Moscovo”, que visa tomar aquela cidade, milhares de camponeses desertores regressaram ao exército. E isso para mim é um indicador de que os camponeses que não queriam lutar ao lado dos bolcheviques, quando vêem que há uma boa possibilidade de os “brancos” chegarem ao poder, regressam.
Qual foi, no fundo, o segredo de Lenine, o seu génio político?
O mais importante contudo é perceber o que foi a revolução de Lenine. Quando os bolcheviques chegam ao poder estão completamente centrados em Petrogrado, ainda nem sequer controlam Moscovo. Estão isolados, a maior parte das pessoas acha que são demasiado fracos e que não se aguentarão senão alguns dias ou semanas. É neste quadro que Lenine adota e encoraja a guerra civil e é este que acaba por possibilitar a construção do seu regime. Essa é a real conceção da sua revolução, do seu modelo revolucionário. A revolução social não é necessária se primeiro se tomar o poder com base na força militar, e se depois, através de uma ditadura e de uma guerra civil, se destruírem os inimigos, polarizando a sociedade. É a partir do centro que se construiu um exército vermelho, uma burocracia, uma máquina de Estado. Foi a partir do centro que se conduziu a guerra, com a revolução a chegar às províncias com os comboios que transportavam os soldados. O controlo dos caminhos de ferro é central neste processo.
É pois este o modelo da revolução leninista: primeiro toma-se o poder, depois é usando o poder do Estado que se promove a revolução social. Não é ao contrário.
Há uma questão de “e se?” no final do livro. É a de saber o que teria acontecido se o famoso testamento de Lenine tivesse sido lido no final do Congresso do partido de 1923 e se este tivesse afastado Estaline da sucessão de Lenine. Sabemos o que foi a cruel ditadura estalinista, mas acha que uma ditadura leninista, que aliás já existia, poderia ter sido muito diferente?
Não é por acaso que termino o livro em 1924, quando existem todas as condições para o sistema estalinista se impor. Uma ditadura liderada pelo terror, pelo monolitismo, pela destruição de todas fações no partido bolchevique. Refira-se contudo que foi Lenine quem introduziu o princípio do monolitismo e da proibição das fações, não foi Estaline – o que Estaline fez foi levar esse princípio até ao limite durante as purgas e o grande terror dos anos 30.
Não dou muito peso à questão de que poderia ter sido diferente se Lenine tivesse vivido mais tempo. Por certo teriam existido problemas diferentes, e a única coisa que talvez possamos dizer é que a coletivização da agricultura que Estaline promoveu não teria acontecido naqueles termos. Não teria existido aquela campanha coerciva massiva, contra os camponeses, de imposição de quintas coletivas, em que milhões foram mortos ou morreram de fome. Isso não teria acontecido. Creio que sob a alçada da Nova Política Económica teria sido uma coletivização muito mais gradual. Lenine apostou nas cooperativas e elas estavam a funcionar bastante bem, dando ao Estado um mecanismo de troca de bens com os camponeses. Até as unidades coletivas que estavam a ser desenvolvidos nessa altura, onde só a terra era cultivada em conjunto mas as ferramentas eram guardadas pelos indivíduos e pelas famílias, começavam a mostrar sinais de sucesso por volta de 1927. Mas não quero romancear Lenine como sendo o “lado bom” e Estaline como sendo o “lado mau”.
A Nova Política Económica foi a uma forma pragmática de lidar com os problemas económicos de um país em guerra, não obedecia a um programa ideológico. Já a coletivização dos meios de produção era algo que estava nos livros…
Sim, a coletivização é ideológica, mas não creio que na forma em que Estaline a impôs. Sim, a Nova Política Económica foi a princípio um improviso, apenas para parar as rebeliões camponesas e reintegrar os bens no mercado, mas era uma concessão necessária pela qual Lenine se bateu, tendo de vencer a oposição de muitos dirigentes bolcheviques, pois a NEP ia contra a pureza dos ideais comunistas e coletivistas. Por isso mesmo levou dois a três anos a encarreirar, só em 1924 é que realmente começa. Não quero idolatrá-la, mas na verdade só esteve em funções durante três anos. Depois veio a coletivização estalinista.
Publicou “A Tragédia de um Povo” há 20 anos, pouco tempo depois da abertura dos arquivos soviéticos. Com o que sabemos hoje, com o que já se descobriu nesses arquivos, mudaria alguma coisa em “A Tragédia de um Povo”?
Acho que a resposta é: não muito. Não há muito mais sobre este período. Teria escrito o livro de maneira diferente? Sim, talvez mudasse uma coisa ou duas. Daria mais ênfase à I Guerra e ao seu impacto na revolução. Daria mais importância às nacionalidades. Olharia mais profundamente para a Ucrânia e para o “fator Ucrânia” na revolução. Seria um livro mais empírico do que é. Mas se há alguma coisa que teria de ser completamente reescrita? Acho que não.
Ao longo do livro não fala muito sobre uma “alma russa” que possa ter sido determinante nesta tragédia de um povo – mesmo dando-lhe o sentido grego da palavra tragédia. Mas quando vemos o que aconteceu na Rússia em 1991, depois do fim do comunismo, quando verificamos que só tivemos um breve período de algo similar a uma democracia liberal, a que logo sucedeu o atual regime autocrático, o que é que podemos aprender sobre a revolução de há 100 anos?
Penso que podemos perfeitamente aplicar o termo “a tragédia de um povo” àquilo que aconteceu desde 1991. E podemos no sentido em que o colapso do sistema soviético não deu lugar à emergência de forças democráticas e liberais que pudessem construir um regime constitucional. Mas isso não tem nada a ver com a “alma russa”, ou com algo parecido com um qualquer ADN do povo russo. Tem sim a ver com a história, com as instituições, ou melhor, com a fraqueza das instituições…
Não será mais do isso? Não haverá hábitos, tradições, que são parte da cultura do povo russo? Recordo que até ao último minuto, em 1917, mesmo no meio do desespero, os camponeses ainda olhavam para o czar como o seu czar…
Sim, isso é verdade, e é assim porque o poder sempre foi institucionalmente calibrado à volta do culto do líder. No tempo dos czares, nos anos do comunismo, agora com Putin. Por isso a pergunta que temos de fazer é onde estavam as bases democráticas para os partidos políticos emergirem depois de 1991? Não existiam.
Mas será que existiam noutros países com os mesmos problemas mas que conseguiram fazer as coisas de maneira diferente, em especial na Europa de Leste? Não haveria aí outras tradições?
Sim, tinham outras tradições. Tinham uma memória de tempos diferentes. Qual era a memória que os russos tinham em 1991? Uma memória de repressão do Estado, uma memória de que não se faz nada até nos dizerem para fazermos, uma memória em que não se questiona a autoridade, uma memória em que se nos tornamos ativos de uma maneira que não é autorizada podemos acabar mortos, ou podemos meter-nos em problemas. Portanto, uma memória que levava e leva à passividade. Este era um sistema em que o poder era dos poderosos. Se não formos ricos ou parte do sistema de poder, não somos nada. As coisas eram assim na Rússia.
E continuam a ser assim ainda hoje?
Ainda são assim hoje. Mas a Intelligentsia russa, que é a classe de onde poderia ter surgido algo de novo em 1991, primeiro foi vastamente sobrevalorizada pelo ocidente, e depois foi vastamente sobrevalorizada por ela própria. Na verdade é um sector muito pequeno, os seus membros são fracos, e por natureza, devido à sua história, são oposição.