Na semana passada, Rui Ramos publicou aqui um artigo (“O mundo que está a nascer em Aleppo”) que me merece o acordo absoluto. Nele analisa as consequências de vivermos num mundo onde os Estados Unidos deixaram de desempenhar o papel de vigilância e responsabilidade a que estivemos habituados durante as nossas vidas. Sem a sua acção, o terreno ficaria inteiramente livre para o uso arbitrário da força por tiranos e tiranetes de toda a espécie e por grupos de selvagens organizados. Simultaneamente, na ausência do exercício do seu poder, os movimentos de indignação que a suposta natureza maléfica desse poder invariavelmente suscitava em muitos tenderiam a desaparecer, resultando daí uma atitude de indiferença para com o sofrimento provocado por barbáries sortidas. “São todos maus, é muito complicado”, tal seria a esquálida moral a retirar deste novo mundo onde o supremo objecto de detestação, os Estados Unidos, deixaria de ocupar a boca de cena.

A coisa teria começado com Obama, segundo Rui Ramos, e Trump certamente prolongá-la-á. A vida dá tantas voltas que, confesso, não sei se será de facto esse o caso com Trump (lembremo-nos das intenções com que começou a presidência de George W. Bush até chegar o 11 de Setembro). Mas certamente que foi assim com Obama. A cada dia que passa é mais patente que o vazio deixado por Obama, um dos piores presidentes americanos de que me lembro, foi um poderoso incentivo para a acção das variadas forças da barbárie que por aí andam à solta. E não estou só a pensar no campo livre deixado a Putin nem das várias “linhas vermelhas” traçadas, e logo esquecidas, a Assad. Estou a pensar, por exemplo, na forma displicente com que encarou os inícios do Estado Islâmico, como se se tratasse de pouco mais do que uma agremiação de crianças mal-educadas.

De qualquer maneira, a questão central que me interessa é mesmo a da indiferença, e isso independentemente da análise de Rui Ramos. Dito de outra maneira: como convivemos nós bem, somando tudo, com o sofrimento alheio, aquele que, por exemplo, observamos em Alepo. Porque, de facto, convivemos bem, e não serão sem dúvida ocasionais exclamações de indignação que mudam esse simples facto. Há com toda a probabilidade razões muito diversas e contraditórias, para além daquelas enunciadas por Rui Ramos, para que assim seja. Em primeiro lugar, problemas próprios que mais directamente nos afectam. O terrorismo islâmico, que nos ataca aqui onde estamos, é indiscutivelmente um deles. Os atentados sucedem-se uns aos outros e não se vê literalmente como os poder parar. Passaram a fazer parte das nossas vidas. E os atentados sugerem reacções que dão a plena medida da nossa impotência. Anteontem ou ontem, a televisão mostrou, em Berlim, um extenso grupo que cantava, em memória dos mortos da carnificina islamista, “We are the world, we are the children”. Nem mais. Não me lembro de nada que mostre tão bem como isto a total e grotesca ausência de meios intelectuais e morais para reagir ao terror em que boa parte da população europeia vive. “We are the children”. Indeed.

Além desta razão, há, no caso de Alepo, uma efectiva confusão que desafia uma tomada de posição que não seja a de uma piedade genérica pelas vítimas. Entre, por um lado, o carniceiro Assad e os seus ajudantes xiitas de proveniência vária e, por outro lado, o Estado Islâmico e sunitas de pinta variada, há, dizem, uma “oposição moderada” que Obama, à distância, acarinhou. A sua detecção está a cargo de especialistas que só a comunicam de forma muito imperfeita ao grande público e que este, em consequência, ignora. Quem são os “moderados”? O que são os “moderados”? O que é, no contexto, ser “moderado”? Que critérios (religiosos ou outros) definem a “moderação”? Não devo ser o único a, neste caso, não o saber.

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É sempre assim neste tipo de conflitos? Não. O facto de as situações serem por definição complexas não exclui, à partida, a possibilidade de uma tomada de posição. Tomemos o exemplo da desagregação da ex-Jugoslávia nos anos noventa do século passado. É uma história que conheço relativamente bem porque a segui de perto, li imensa coisa sobre o assunto e até me atrevi, com a intenção de escrever uma reportagem, a uma irresponsável excursão pela Croácia e pela Bósnia em 1994, que conheceu o seu ponto mais esclarecedor numa estadia numa Mostar com a parte muçulmana completamente destruída e com a outra em muito mau estado (não saiu reportagem nenhuma: saiu, pior, uma coisa parecida com um romance, publicado em episódios, em Paris, numa revista apropriadamente intitulada Les Épisodes). Aí, justamente, podia-se tomar partido. Por muito complexa que fosse a situação, os dados permitiam um juízo político seguro. Havia mesmo uma agressão sérvia e os outros, principalmente os muçulmanos bósnios, eram as vítimas. Qualquer indiferença era, à partida, politicamente culpada.

Não assim na Síria actual. Há, claro, a obrigação da piedade e ajuda às vítimas. Mas isso não é um sentimento político nem permite a passagem para uma atitude política. Estamos na impossibilidade de um juízo e do desejo reflectido de uma acção. É a indiferença, neste caso, politicamente culpada? Não creio. A indiferença pelo sofrimento humano em estado puro, obviamente, aqui como sempre, é moralmente culpada. Permito-me insistir nisto para evitar, na medida do possível, interpretações erradas do que estou a dizer, por mais que custe e seja vexatório repetir o óbvio. Mas esse é um plano distinto. Politicamente, a coisa é diferente. Se alguém pudesse mostrar o contrário, era bom que o fizesse.

À falta dessa prova, não me parece abusivo pensar que, em certas situações, a indiferença política, por mais incómoda que seja de adoptar, é uma atitude legítima. O juízo político é, num certo sentido, uma obrigação. Mas forçá-lo quando não há elementos que nos permitam levá-lo a cabo com o mínimo de acerto não anda longe da desonestidade. Por outras palavras: há casos em que o melhor é retirarmo-nos decididamente para a esfera privada. No outro dia, um amigo contou-me uma história, de que me havia esquecido, passada com o meu padrasto. Lá em casa havia, há muito tempo, vários cocker spaniels. Um dia, uma senhora dirigiu-se ao meu padrasto: “Ó Dr. Pedro, porque é que gasta tanto dinheiro com os seus cães quando há tantos pobrezinhos com fome no mundo?”. A resposta foi, como de costume, muito sensata: “Não me está a ver à noite no sofá, em frente à televisão, com dois pobrezinhos sentados ao colo, pois não?”. É isso mesmo. Quando a acção, ou o juízo, não levam a nada, e não podem levar, mais vale pensar naquilo de que gostamos e nos dá prazer. É a atitude menos cínica que há.