Há que voltar ao prato frio presidencial, porque o que está em causa é a compreensão do que se passa em Portugal. No dia 22, ao anunciar a data das eleições legislativas, o Presidente da República explicou as vantagens de um governo sustentado por uma “maioria estável no parlamento”. A oligarquia partidária e comentadora aproveitou logo para repetir a rábula de sempre: não se percebe Cavaco, Cavaco esteve mal, etc. O secretário-geral do PS, entusiasmado, desceu mesmo até à condescendência irónica. A dificuldade, para os mais finos, era esta: como é que Cavaco Silva pede agora um governo maioritário, quando em 2009 aceitou um governo minoritário?
Não é um mistério. Em 2009, o Presidente tinha um problema: Sócrates. Sócrates está hoje detido às ordens da justiça, e mesmo assim teve durante meses o PS em fila à porta da prisão. Imaginem que, há seis anos, Cavaco Silva não lhe tinha dado posse. Teria provavelmente sido o fim do regime.
Antes de nos falarem das supostas limitações pessoais de Cavaco Silva, falem-nos das reais dificuldades políticas que encontrou. Cavaco Silva enfrentou um problema que, antes dele, nenhum outro Presidente teve: foi o primeiro cuja eleição não contou com o apoio do PS. Os líderes socialistas fizeram-lhe sentir isso a todas as horas. Nunca o trataram senão como um intruso. Depois de 2011, o primeiro Presidente que não foi votado pelo PS viu-se perante o primeiro ajustamento em que o PS, agora na oposição, recusou colaborar, ao contrário do que acontecera em 1978 e em 1983-1985. Entre 2011 e 2014, Cavaco Silva falou muito do risco de uma ruptura social. Mas o risco de uma ruptura política foi maior.
O mito de que o Presidente favoreceu este governo e excluiu o PS é ridículo. O Presidente favoreceu o ajustamento, não o governo, e nunca se coibiu de criticar esta ou aquela opção governamental. O governo não pareceu sólido até ao Verão de 2013. Em Julho desse ano, o ministro das Finanças e o ministro dos Negócios Estrangeiros deram a entender, demitindo-se, que não acreditavam na possibilidade do ajustamento. O Presidente propôs então uma fórmula que traria o PS de volta ao governo. Foi a vez de os socialistas demonstrarem a sua impotência: António José Seguro, minado no partido, não pôde assinar nada. A culpa foi de Cavaco Silva?
Neste momento, a oligarquia finge acreditar que um governo minoritário a partir de Outubro nunca deveria ser uma preocupação. É uma farsa bizarra. O país emergiu do resgate, mas não dos seus problemas: dívida, défice, impostos altos, crescimento baixo. Vai ser preciso reformar, se quisermos continuar no euro. Com um governo minoritário, dependente de negociações à direita e à esquerda, teríamos escaladas de juros nas vésperas de cada votação parlamentar. Só o Presidente é que está a ver? Andam todos distraídos?
A oligarquia gosta de discutir Cavaco Silva, mas não sabe como. A falta de imaginação manda que a pergunta seja sempre a mesma: é ele ou não um “político”? A questão sobre Cavaco Silva não é essa, mas outra: saber que tipo de político ele é. O actual presidente é um “institucionalista”. Alguns o têm dito, mas é preciso perceber o que isso significa. Cavaco Silva não acredita na política de confrontos ideológicos, como a que Margaret Thatcher praticou no Reino Unido há trinta anos. Provavelmente, porque receia que a alta tensão acabaria por dividir o país, como aconteceu em 1975. Em vez disso, Cavaco Silva preza uma política de consenso, enquadrada pelo projecto da integração europeia. Para ele, é esse o único meio de garantir a continuidade do regime e a prosperidade do país. Era bom que houvesse uma alternativa. Mas alguém tem?
Cavaco Silva desempenhou um dos mandatos de chefe de Estado mais difíceis da democracia. Frequentemente, pareceu uma das poucas pessoas preocupadas com o essencial. O regime aguentou o ajustamento, as instituições funcionam regularmente, e os grandes partidos começam a congregar as intenções de voto. Para garantir isso, Cavaco Silva resistiu a muita coisa. Não só aos ataques e às intrigas, mas também às tentações de popularidade e de populismo: que fácil teria sido dar o tal “murro na mesa”, e levantar o país contra os “políticos”. Não o fez, e muitos aproveitarão isso para dizer que, afinal, não fez nada. Mas os princípios da medicina aplicam-se igualmente à Presidência da República: acima de tudo, não fazer mal. Um dia, outra geração verá claramente o que o facciosismo e a leviandade não deixam agora compreender.