Depois da greve dos enfermeiros, a greve dos juízes. Tudo isto é de algum modo edificante. Os enfermeiros mostram-nos que o SNS, com que tanto enchem a boca, afinal não lhes interessa, a não ser como fonte de empregos e regalias. Os juízes deixam-nos perceber que, no fundo, se sentem como quaisquer outros empregados por conta de outrem, o que nos sugere esta dúvida: por que razão têm então o estatuto e as garantias de um órgão de soberania?

O líder da oposição procedeu entretanto ao seu diagnóstico: o governo, com o espalhafato das “boas notícias”, teria feito mais uma vez as expectativas subir acima das possibilidades. É isso? Talvez também seja isso. Mas o problema principal parece-me ser outro. O actual governo e a sua maioria não insuflaram apenas as expectativas. Fizeram outra coisa: com a sua “narrativa” do fim da austeridade e da devolução de rendimentos, convenceram muitas classes profissionais de que as remunerações não dependem da produtividade, mas da luta política.

Lembremos qual foi a tese que os actuais ministros e os seus aliados parlamentares trouxeram para o governo. Em 2011, num país próspero e de contas equilibradas, um bando de malfeitores neo-liberais apossou-se do poder, e começou a cortar rendimentos aos portugueses. Como recuperaram os portugueses esses rendimentos? Trabalhando, reorganizando-se, reequilibrando as contas, tornando-se mais competitivos? De modo nenhum. “Resistindo” e “lutando”, até o governo maldoso ser substituído por um governo bondoso.

Reparem: para a diminuição de rendimentos, segundo o presente governo, não houve nenhuma razão, a não ser a ideologia do governo anterior; e para a sua reposição, nenhuma outra razão, a não ser a derrota desse governo. A “luta”, e não o trabalho, é portanto o modo de adquirir proventos. É esta a cultura económica de António Costa e da sua maioria: o Estado é o grande distribuidor de rendas, e a situação de cada um depende, por isso, da sua relação com o Estado.

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Toda a sociedade é explicada desta maneira. Se há ricos, é só porque o Estado não lhes cobra impostos. Se há pobres, é só porque o Estado não lhes dá subsídios. Tudo passa pelo poder político. A ideia de um esforço colectivo para aumentar a riqueza e melhorar a condição de todos é estranha a esta filosofia. A riqueza é uma quantidade constante disputada pelos vários grupos, e repartida pelo Estado de modo arbitrário, conforme a relação de forças.

Neste momento, a conjuntura é a mais propícia dos últimos dez anos: o dinheiro continua barato, o petróleo também, todas as economias europeias crescem, e os voos baratos e o medo do terrorismo islâmico no Mediterrâneo inundaram Portugal com a maior vaga de turismo desde os anos 60. Mas como é que o governo e a sua maioria convidam os portugueses a aproveitar esta situação? Tendo ideias, esforçando-se, investindo, trabalhando? Pelo contrário, a prioridade governamental é até dificultar e carregar de impostos todas as actividades e iniciativas, como o arrendamento local. A via certa para aproveitar a conjuntura é ligar-se ao Estado, e tentar, através da greve, do protesto e do lóbi, arrancar rendas e regalias ao poder político, que por sua vez “luta” em Bruxelas para extrair mais dinheiro à UE.

No segundo trimestre deste ano, Portugal já foi o país europeu cuja economia menos cresceu (0,3% contra, por exemplo, 2,5% da República Checa ou 1,5% da Holanda). Fora do turismo, não somos competitivos. Mas que interessa isso? O que importa é a “luta”.