A estratégia era simples e resultara com Sócrates: não se detalham as propostas sobre a forma como se pensa governar. Na Assembleia da República, o deputado socialista Alberto Costa defendeu mesmo que a apresentação de propostas pode “perturbar a avaliação” dos eleitores e ainda ontem, aqui no Observador, Ferro Rodrigues declarava “Faz mais sentido não avançar com propostas ou proclamações que depois não são possíveis de levar à prática depois das eleições” o que nos deixa a terrível pergunta: e das outras, aquelas que são possíveis de levar à prática depois das eleições, o PS vai continuar sem falar?

A estratégia do PS passava então pela criação de incidentes: a viagem de Maria Luís à Alemanha foi transformada num caso. Na TVI24 Santos Silva declarava mesmo que “aquela fotografia de Maria Luís ao lado de Wolfgang Schäuble podia bem ser o cartaz eleitoral nº 1 do Partido Socialista”. Entretanto, nos tempos em branco dizia-se mal de Cavaco Silva, exercício que é uma espécie de ocupação dos tempos livres dos socialistas. No fim a vitória era certa. Em teoria, claro.

E eis que quando menos o esperava, o Largo do Rato vê cair-lhe em cima um incidente por causa de umas declarações perfeitamente razoáveis de António Costa. Declarações essas que só foram polémicas porque existe em Portugal a destrambelhada ideia de que, perante a realidade, a oposição só pode dizer mal e o Governo só pode dizer bem. No limite desta usança do reino temos o PCP e respectivo conglomerado sindical que desde Novembro de 1975 garantem que Portugal está pior a cada dia que passa, o que a ser verdade faria de nós uma horda de famintos errantes na Terra porque 40 anos vezes 365 dias a perder qualidade de vida teria no mínimo provocado um genocídio entre os portugueses.

(Para o PCP o país esteve bem governado desde o 28 de Setembro de 1974 até ao 25 de Novembro de 1975: nessa época as greves eram antipatrióticas – o Secretário de Estado do Trabalho, Carlos Carvalhas, não só recusou debater a Lei Sindical na RTP como o Governo considerou tal debate inoportuno – e os sindicatos arrebatados com a revolução ora transformavam um Domingo de Outubro no Dia de Trabalho para a Nação ora faziam peregrinações à Praça de Londres para agradecer ao ministro Costa Martins e ao Secretário de Estado Carlos Carvalhas o seu labor em prol do socialismo e da defesa dos trabalhadores.)

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Mas o culto da inverosimilhança, que é uma característica folclórica dos partidos que precisamente por esse privilégio-fraqueza se excluem das soluções de governo, torna-se um factor perverso do funcionamento da democracia quando se chega aos grandes partidos: ao optarem por desenhar um quadro o pior possível da situação, as oposições ficam pelo desenho do apocalipse e privam-se de dizer como governariam. Já o governo resguarda-se na tese de que não há alternativa às suas opções.

Esta recusa do PS e do PSD a definirem o que os separa ideologicamente torna obviamente mais difíceis as alianças entre ambos os partidos – negociar nesta indistinção pode ser sempre interpretado pelos respectivos eleitorados como uma traição – e a nós condena-nos a um confronto político fulanizado, sem substância, que um jornalismo cada vez mais sentado amplia ao ritmo insuportável dos chiliques das redes sociais.

Mas o aspecto mais surpreendente desta polémica é que ela revelou um líder socialista inesperadamente desorientado: a não ser que pretenda ajudar as operadoras de comunicações móveis e contribuir para que o BE deixe de ser um agrupamento em vias de extinção, António Costa não está mesmo a pensar repetir a graça de mandar sms justificativos aos militantes? É que vem aí uma campanha para as legislativas e se reagir assim de cada vez que interpretam polemicamente as suas palavras acabará a mandar sms à dúzia de hora a hora.

Costa chegou a presidente da CML sem ter de travar debates a sério – nas últimas eleições municipais nem sequer houve debates nas televisões – durante anos gozou de uma excelente imprensa e, agora que passou para o primeiro plano, não parece saber lidar com as críticas e muito menos com as polémicas. A esta fragilidade, que terá de resolver rapidamente, junta António Costa um tremendo problema: as razões por que muitos o quiseram ver como secretário-geral. E nenhuma dessas razões Costa consegue resolver porque umas são do domínio da Fé – muitos socialistas acreditaram que bastaria substituir Seguro por Costa para que o PS galgasse nas sondagens e agora sentem-se desiludidos porque o seu pensamento mágico não está a funcionar! – e as outras, propiciar as condições para um retorno de José Sócrates, acabaram frustradas, o que não quer dizer que os seus promotores estejam vencidos e muito menos convencidos de que Sócrates não voltará a liderar os socialistas.

António Costa levou anos a calcular o momento certo para avançar para a liderança. Escrevi-o várias vezes a respeito desse e de outros percursos calculados com rigor: na política quem muito calcula pouco acerta. E assim Costa, que parecia ter feito tudo bem, escolheu um péssimo momento para avançar, ou melhor dizendo para finalmente atender à vaga de fundo que há muito o queria colocar à frente dos socialistas. Acontece que na mesma vaga ia uma candidatura presidencial, a de Sócrates: condecorações, livros, elogios por Ferro Rodrigues na AR… preparavam o auspicioso caminho para Belém do anterior líder socialista. Aliás, caso Sócrates não tivesse sido detido, neste momento boa parte da máquina socialista estaria arrebatadamente a tratar da sua campanha presidencial.

E aí está o busílis da questão: ao contrário daquilo que Ferro Rodrigues declarou ao Observador, o problema para os socialistas não é Sócrates estar preso. Costa tem gerido bem a questão da prisão de Sócrates – presumo que com certa fúria interna de alguns notáveis! O problema está sim na relação que o PS mantém com Sócrates enquanto político. Por muito impactantes que sejam as imagens de Sócrates a ser levado dentro de um carro da polícia, na hora de votar o problema dos portugueses é com outra imagem, com aquela em que o antigo primeiro-ministro aparece a fazer o pedido de ajuda externa. Ora ao apostar no argumentário de que está tudo pior, e ao obrigar um secretário-geral a dar o dito por não dito simplesmente porque este afirmou que o país está melhor do que em 2011, o PS criou um gigantesco problema a si mesmo: está a dar como adquirido que considera 2011 melhor do que a actualidade, coisa tecnicamente impossível de conseguir enquanto o video de Sócrates a fazer o pedido de ajuda externa não for retirado da internet em nome do direito ao esquecimento. O país não está bem, longe disso, mas está de facto diferente e diferente para melhor quando se compara com 2011.

Entendamo-nos: não tenho qualquer dúvida de que, caso o governo actual fosse socialista, que tivesse conseguido os mesmos resultados e que tivesse sido chamado a desempenhar funções após um pedido de ajuda externa efectuado por um primeiro-ministro social-democrata (posteriormente detido por suspeitas de fraude fiscal, branqueamento de capitais e corrupção) o PSD provavelmente já teria mudado de nome, a sua direcção teria sido completamente renovada e os novos dirigentes viveriam um largo ostracismo até que fossem novamente considerados pessoas ao lado de quem se podia sair nas fotografias. Que nada disso tenha acontecido ao PS só prova que ele é de facto o partido matricial do regime. Mas se os grandes partidos em Portugal e ao contrário do que aconteceu na Grécia e está a acontecer em Espanha e em França não se abatem (ainda), a verdade é que em 2015 uma campanha eleitoral em que não se discutem propostas mas sim incidentes será um desastre para o país e um factor de degradação para todos. A começar pelo PS e pelo PSD.