O número de palavras consumidas nas declarações de voto do acórdão do Tribunal Constitucional sobre os cortes salariais na função pública é o dobro das que foram necessárias para escrever a sentença. No acórdão sobre as pensões a proporção é diferente, mas mesmo assim a relação é de pouco mais de três para um, uma proporção mesmo assim muito elevada para um documento emanado do Palácio Ratton.

Se compararmos o peso das declarações de voto dos acórdãos do TC sobre legislação com impacto orçamental em 2014 com, por exemplo, o verificado nos acórdãos de 2013, verificamos que as declarações de voto, se antes eram quase marginais, agora ganharam um peso considerável, num caso sendo mesmo mais longas que a decisão propriamente dita. Os juízes, aparentemente, decidiram mostrar de uma forma muito mais clara as suas divergências, começando a ser tão importante ler as suas declarações de voto como ler as próprias sentenças. Tudo porque são cada vez mais evidentes as divisões e tensões entre os juízes do Ratton.

Na verdade, lendo mais estes dois acórdãos, notam-se muitos sinais de desnorte que geram decisões dificilmente compreensíveis ou fruto de evidente activismo por parte de alguns do titulares daquele órgão de soberania. Vejamos apenas alguns dos temas controversos que resultam destas recentes deliberações.

A Europa afinal não existe

O primeiro tema relevante, e que seguramente voltará à mesa do TC, é o da relação entre a nossa Constituição, e a interpretação que dela fazem os juízes, e as obrigações que resultam dos tratados internacionais que o nosso país assinou, em especial os tratados europeus, e entre estes o Tratado Orçamental.

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Por regra, nas suas já numerosas deliberações sobre questões orçamentais, os juízes têm ignorado, ou feito por ignorar, as nossas obrigações externas e o condicionalismo que marca inevitavelmente as políticas de um Estado com uma autonomia financeira limitada. Desta vez não o puderam fazer, pois isso era expressamente invocado no pedido de fiscalização feito pelo Presidente da República. Também não o poderiam fazer de ânimo leve pois o Governo, na sua argumentação, apelou a que se procurassem soluções que não pusessem em conflito o nosso ordenamento constitucional com o ordenamento da União Europeia.

A solução encontrada pela maioria dos juízes foi cínica: em vez de reconhecerem que o Tratado Orçamental impõe ao país metas exigentes por muitos e bons anos, ficaram-se pelos procedimentos de défice excessivos e pelas imposições do programa de assistência financeira. Depois, concluíram citando princípios gerais que são comuns ao nosso direito constitucional e ao direito europeu – os princípios cujo interpretação muito particular o Tribunal tem invocado para chumbar medidas de corte na despesa atrás de medidas de corte na despesa.

A hipocrisia da maioria dos juízes vai ao ponto de invocarem as metas do Documento de Estratégia Orçamental, quando elas apontam para alguma recuperação da situação económica, para em nome dessa recuperação chumbarem as medidas que permitiriam atingir tais metas. É preciso ler para acreditar.

De facto, como notou a juíza Maria Lúcia Amaral na sua declaração de voto, “fica-se sem saber, afinal, por que motivo invoca agora o Tribunal esse quadro normativo, e qual a relevância jurídico-constitucional que lhe confere. Na verdade, nenhuma conclusão valorativa dele se retira quanto à ponderação própria a fazer no âmbito da “igualdade proporcional”. Por que motivo se não tiveram em conta, no julgamento sobre a questão de constitucionalidade, as constrições externas à República, e que perduram para além de 2015?”

Esta juíza contraria frontalmente a ideia de que os valores invocados pela maioria dos seus pares podem ser avaliados sem deixar de “integrar-se na ponderação o mandato constitucional para com a integração europeia”.

Mais tarde ou mais cedo o Tribunal vai ter de entender essa verdade elementar, que de resto alguns do seus membros (citados numa nota técnica enviada pelo Governo) já subscreveram, apesar de agora parecerem muito esquecidos.

O papel do legislador e o papel do juiz

Se algo tem caracterizado a actuação de uma maioria de juízes deste TC é a sua tendência para um activismo que os leva a ultrapassarem as meras questões jurídicas para entrarem, sem pudor, em áreas de avaliação subjectiva das opções políticas do legislador.

Desde os primeiros chumbos que argumento que o problema quase nunca esteve na Constituição e em normas muito concretas – isso só terá acontecido na avaliação da legislação laboral e pouco mais. O problema sempre esteve em os juízes acharem-se mais competentes do que os legisladores para aferirem efeitos como a “igualdade”, a “proporcionalidade”, a “confiança” ou a “necessidade”. Ora isso são juízos eminentemente políticos que cabem antes do mais a quem é directamente legitimado, ou deslegitimado, pelos eleitores, isto é, aos legisladores.

Este debate é muito antigo noutros países mas não em Portugal. Gonçalo Almeida Ribeiro, um constitucionalista da nova geração, fez no Observador – Um voto de vencido histórico – uma boa síntese do problema. O livro “O Tribunal Constitucional e a Crise”, que reúne artigos de nove constitucionalistas críticos da jurisprudência do TC, também ajudou ao debate. Leiam-nos, releiam-nos e discutam-nos. Mas não os ignorem.

O tema está de novo muito presente nestes acórdãos e em algumas das declarações de voto, como as de Maria Lúcia Amaral. Ela insurge-se, por exemplo, contra a decisão sobre a contribuição de solidariedade por considerar que não é aceitável “que um juízo eminentemente moral sobre a justiça de uma tal reforma caiba a uma maioria formada no seio de uma instituição de índole jurisdicional”. Na sua opinião isso não melhora a qualidade da deliberação pública: “pelo contrário, degrada-se essa qualidade, uma vez que se nega aos cidadãos o direito a ter uma palavra a dizer sobre tão delicada matéria”.

Maria Lúcia Amaral concretiza considerando que o TC não pode impor ao legislador a sua visão do que é uma “reforma justa” do sistema de pensões, até porque não está preparado para isso. Exacto: não basta comprar livros de economia para a biblioteca do TC para se passar a ser especialista em economia.

Um dos princípios da democracia é a separação de poderes. Da mesma forma que não gostamos de ver o poder legislativo ou o poder executivo a interferirem com o poder judicial, e indignamo-nos sempre que isso acontece, não devemos tolerar que juízes, mesmo juízes políticos como são os do Palácio Ratton, queiram impor aos legisladores as suas visões e agendas muito próprias. É isso que decorre da separação de poderes, é isso que impõe a necessidade de mantermos um sistema equilibrado de pesos e contrapesos.

Mesmo os que hoje gostam das decisões do TC deviam perceber que a forma perversa como ele tem invadido áreas onde o legislador deve ter latitude para decidir é um abuso de poder judicial que, no futuro, também se pode virar contra eles.

Não existem reformas perfeitas

Se o tribunal não tem competências técnicas, nem tem moral, nem devia ter poder para julgar da maior ou menor bondade de uma reforma, como a reforma do sistema de pensões, a verdade é que a maioria do TC tem encontrado, por regra, uma forma retorcida de se opor a mudanças de fundo. Essa forma retorcida é exigir a reforma perfeita, a reforma que prevê todas as situações, a reforma que não cria nenhuma injustiça relativa. No mundo dos homens e no mundo da política – essa arte do possível – esse tipo de reformas não existe.

Quando, em Dezembro do ano passado, esmiucei e critiquei a decisão do tribunal relativa à convergência das pensões sublinhei que as exigência dos juízes eram impraticáveis. O Governo resolveu fazer nova tentativa, indo por um caminho que, em termos de reforma, era pior do que o da tentada convergência, mas voltou a esbarrar no activismo dos juízes. Sendo que estes continuam a pedir a tal reforma perfeita, impossível. Sendo que estes chumbarão qualquer reforma onde encontrem qualquer defeito, e todas terão defeitos.

Basta pensar no seguinte. A maior parte dos reformados com pensões elevadas – logo as que são susceptíveis de ser cortadas – são pensionistas do regime dos funcionários públicos. Durante muitos anos este regime não previa que fizessem descontos – o Estado fazia por eles. Logo, não há registo de boa parte da sua carreira contributiva. No entanto o Tribunal veio agora dizer que, para aceitar cortes, só se tiverem em conta as diferentes carreiras contributivas, algo que, como se vê, é materialmente impossível. Até se admite – eu admito – que seria mais justo, mas não é possível.

Assim, em nome daquilo a que chamou “justiça intrageracional”, os juízes prejudicaram gravemente a justiça intergeracional, pois sobrecarregam com impostos e contribuições os que ainda não estão reformados e pagam a reformas dos que já se aposentaram.

Por outro lado, ainda há pouco mais de duas semanas, na decisão sobre a CES, o tribunal escrevera que o nosso sistema de pensões não era baseado apenas no regime contributivo, de autofinanciamento, também exigia o recurso ao dinheiro dos contribuintes. Sendo assim, tolerava que os reformados também fossem chamados a colaborar nesse financiamento. Agora renega, na prática, essa ideia, ao sublinhar a importância do princípio contributivo, e da carreira contributiva, e deixando a possibilidade de existência de uma taxa como a CS para circunstâncias de uma justiça inatingível.

Teria sido mais honesto e mais claro os juízes dizerem apenas que não toleram cortes nas pensões, em vez de fingirem que toleram para depois tornarem impossível qualquer solução. Já há um ano tinham feito algo parecido, quando disseram que até admitiam despedimentos na administração pública, esquecendo de referir que tinham acabado de os proibir para todos os funcionários entrados antes de 2008, ou seja, mais de 85% do universo dos trabalhadores do Estado.

Creio por tudo isto que vamos continuar a ter muitas e variadas declarações de voto. A justiça constitucional está a tornar-se numa disciplina cada vez menos consensual e cada vez menos jurídica.

Não sei quanto tempo a instituição Tribunal Constitucional vai levar a recuperar da funesta presidência de Joaquim de Sousa Ribeiro, um homem a quem os olhos brilham de deleite quando utiliza, frente às câmaras de televisão, figuras jurídicas com a profundidade e espessura de “cortes cegos”…