Não é um, nem dois, nem três, são nove académicos de três Faculdades de Direito. Todos eles críticos dos acórdãos do Tribunal Constitucional nos anos do memorando de entendimento. Os nove juntaram-se num livro chamado “O Tribunal Constitucional e a Crise”, que é lançado em Lisboa — com apresentação do ex-presidente do TC, Cardoso da Costa.

Organizado por Gonçalo de Almeida Ribeiro (colunista do Observador, da Faculdade de Direito da Universidade Católica) e por Luís Pereira Coutinho, o livro acrescenta textos de Rui Medeiros (também da Católica) e Paulo Mota Pinto (de Coimbra, deputado do PSD e agora indigitado para chairman do BES). Mas também Jorge Pereira da Silva, Miguel Nogueira de Brito e João Carlos Loureiro, especialistas que já colaboraram com o Governo, em pareceres que defendiam algumas medidas do Governo ou, no último caso, na comissão que preparou as bases para uma reforma das pensões.

Nem todos os artigos, porém, são em defesa do Governo e das medidas adotadas. Há críticas também, alguns avisos, como o que sugere cuidados redobrados nas novas medidas sobre as pensões. Mas a nota comum é a defesa de uma outra leitura da Constituição, mais adequada – referem os autores – aos novos tempos que o país vive e que vão perdurar.

o caso dos salários

Gonçalo Almeida Ribeiro começa pelas origens da discussão mediática: a tese de que as decisões do TC são para seguir, sem críticas.

O que torna estas questões complexas é que elas suscitam a aplicação de normas constitucionais que têm a natureza de princípio. Os princípios (…) têm pressupostos de aplicação relativamente indefinidos porque incorporam conceitos de valor.

Objetivo: centrar a discussão não no texto da Constituição, “mas na qualidade deliberativa da jurisprudência constitucional”. Leia-se, na qualidade das decisões que saem do Ratton. E para o professor de Teoria do Direito este TC cometeu “cinco Pecados capitais” nos últimos anos: “Irrazoabilidade, imprevisibilidade, inadequação, ilegitimidade e insularidade”.

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O artigo não poupa os juízes. Por exemplo, no que respeita ao chumbo dos cortes de salários na função pública:

É no mínimo duvidoso que o TC seja o órgão adequado para determinar o alcance das razões de eficácia subjacentes aos cortes salariais de 2012 e 2013 (…)

A primeira razão é a diferença salarial entre os sectores público e privado. Não se trata de comparar os valores salariais médios nos dois sectores mas de praticar no sector público um ajustamento salarial semelhante ao que ocorreu no sector privado em virtude da contracção da economia.

E mais esta, criticando a imprevisibilidade dos acórdãos e a sua falta de clareza:

A falta de integridade que o TC imputou ao legislador – que promete não despedir para cortar no salário e depois decide despedir – é exclusivamente imputável ao próprio Tribunal. O legislador orientou-se para uma política de despedimentos apenas na sequência da decisão do TC de não admitir novos cortes baseados ‘inter alia’ no argumento da maior segurança no emprego público; já o TC afirmou a irrelevância desse argumento para «chumbar» os cortes salariais e a sua relevância para «chumbar» o regime dos despedimentos.

Almeida Ribeiro ainda critica a introdução do critério de “presunção de erro legislativo”, assim como a “premissa de que o legislador nacional tem uma ampla margem de liberdade política. Só assim se explica a ligeireza com que o Tribunal desvaloriza os argumentos de interesse público na redução eficaz da despesa e a firmeza com a qual censura o Governo por não ter concebido e executado alternativas às medidas de corte salarial e de despedimento na função pública. O legislador imaginado pelo TC é um soberano omnisciente e omnipotente”, alega o especialista. Que termina o artigo dizendo que “há tempos de coruja e tempos de falcão”, “máxima prudencial não apenas do bom príncipe mas também do bom juiz. E os tempos que vivemos – importa salientá-lo – são tempos de coruja”.

uma crise que não foi embora

Central no livro, embora seja o último capítulo, é a defesa feita por Rui Medeiros de que o TC alimenta a “ilusão” de que o país vive, hoje como nos últimos anos, “um problema conjuntural”.

A grave crise económico-financeira que Portugal atravessa e o memorando de entendimento com a troika, na sua relação com a Constituição de 1976, mais do que um momento alfa representam a ponta do iceberg, apresentando-se como uma manifestação do fenómeno estrutural de erosão do constitucionalismo estadual português, na atual encruzilhada pós-nacional.

O constitucionalista da Católica defende que a crise financeira do Estado é mais estrutural e duradoura do que acreditam os juízes do TC, e também que estes desvalorizam a integração europeia de Portugal, nas suas várias dimensões. Os novos tempos, sublinha Medeiros, exigem, “no contexto atual, uma releitura da Constituição no quadro de um Estado constitucional cosmopolita”.

A tese é seguida também por Paulo Mota Pinto, que se dedica a analisar o que considera ser um excesso de intervenção do TC, que limita o espaço de intervenção do Governo.

“Em princípio o Tribunal não deve substituir uma sua avaliação (da situação do país) à que é efectuada pelo legislador, defende o ainda deputado social-democrata, o único dos autores com militância política. Ao contrário, defende,

o TC “intensificou o padrão de controlo, passando, assumidamente ou não, a um “controlo estrito”, que não toma como boas as justificações do legislador em contextos complexos, para as quais aquele está democraticamente legitimado, e tendendo a um “dirigismo constitucional”.

Ora, “não é ao TC que cabe avaliar e determinar o interesse público, o qual depende sempre também de um elemento de decisão política irredutível (…). Respeitar esta fronteira entre o papel do legislador e o papel da jurisdição constitucional é, a nosso ver, essencial para a manutenção do TC como órgão judicial respeitado”.

nas pensões, uma pequena porta aberta

Ao longo de 228 páginas, o livro vai analisando as várias decisões do Constitucional, nas suas diferentes vertentes.

Miguel Nogueira de Brito dedica-se às exigências que se devem colocar sobre os juízes (“quanto mais complexo for o parâmetro de controlo utilizado pelo tribunal, maior é o encargo que lhe cabe na delimitação desse mesmo controlo em face do poder legislativo”).

João Loureiro, por seu lado, fala das pensões, anotando “uma evolução significativa” nas decisões do Tribunal neste particular. Mas sublinha o diz serem “dois erros de base” nos chumbos, “quer em nome da justiça intergeracional, quer da sustentabilidade” do sistema – que alega estar longe de ser garantida. Aqui surge um alerta ao Executivo, relevante tendo em conta a participação deste especialista no processo legislativo em curso:

“Importa continuar a jogar no corte do mundo onde estamos desde há muito e não sermos cortados pelos golpes da insustentabilidade e da injustiça intergeracional, retalhados por (uma) asfixiante dívida (pública)”.

Há ainda um artigo de Jorge Pereira da Silva, da Católica, sobre o chumbo do Orçamento da Região Autónoma dos Açores – portanto, desligado da tensão entre TC e o Governo de Passos Coelho, mas não da atual crise financeira. O texto admite que a inconstitucionalidade é defensável, mas afirma que “outros percursos existem que permitiriam o mesmo desfecho e que, embora não imunes à crítica, se afiguram porventura menos sinuosos, mais transparentes e sobretudo judicialmente mais modestos”.

“O Tribunal Constitucional e a Crise” tem ainda artigos de Maria Benedita Urbano, da Faculdade de Coimbra (com uma leitura “no divã” da jurisprudência da crise), que levanta algumas “perplexidades” sobre a mesma matéria.