Muita gente se convenceu ao princípio de que só duas coisas ameaçavam António Costa: ou uma ruptura com Bruxelas, isto é, com quem lhe dava dinheiro, ou uma ruptura com os seus parceiros parlamentares, isto é, com quem lhe dava votos.

Não era uma análise descabida. Havia de facto uma incompatibilidade entre o “fim da austeridade” e os constrangimentos financeiros do país, e havia também uma contradicção fundamental entre o PS, o PCP e o BE no que dizia respeito a quase tudo o que define o actual regime português, a começar pela integração europeia. Mas se isso era verdade, também eram verdades a debilidade política que reuniu PCP, BE e Costa depois do fracasso eleitoral de 2015, e a necessidade de assegurarem o financiamento do BCE, para que não tinham alternativa.

Nada há de tão forte como uma aliança forjada na fraqueza. O PCP e o BE fazem agora de conta que nunca tinham ouvido falar das cativações de Mário Centeno, e António Costa finge que não repara na pressão dos sindicatos comunistas no Estado. A mão esquerda não sabe o que faz a mão direita, e vice-versa. A maioria, portanto, parece estar para durar, e cumprirá as “obrigações europeias” que justificam a ajuda do BCE. Mas a tragédia de Pedrógão-Grande, a humilhação de Tancos e o processo Galp suscitaram outra possibilidade: é o BCE continuar a dar dinheiro e a maioria parlamentar continuar a dar votos, mas o governo, apesar de tudo isso, acabar — isto é, acabar antes de acabarem a maioria parlamentar e o dinheiro do BCE.

Não, não estou necessariamente a prever a demissão de António Costa. Se o governo continuar a acumular, por azar ou por prevaricação, motivos de indignação, de desprezo ou de ridículo, não é preciso cair para morrer. Esta é uma governação muito limitada. Como quase toda a gente já notou, só parece funcionar com boas notícias. Perante o descontrole dramático de Pedrogão Grande, o desleixo patético de Tancos, ou a promiscuidade estranha do processo Galp, os ministros não pareceram capazes senão de relativizar os acontecimentos e de tentar escapar às responsabilidades. O resultado foi sentirmo-nos inseguros no país, gozados no estrangeiro, e desconfiados de quem nos governa. Caso a degradação continue, o governo poderá até manter-se em funções. Mas não inspirará respeito nem confiança. Arrastar-se-á penosamente, entre a revolta e a irrisão.

Imagino que os situacionistas sorriam com este ponto de vista: “distribuímos muito dinheiro em perdões fiscais e aumentos de salários no Estado. Numa sociedade enfraquecida, temos muitos interesses connosco. Podemos bem dispensar crenças e entusiasmos”. Admito que tenham razão. Este governo e a sua maioria investiram no esvaziamento político do país. Não procuram adesões por idealismo, mas conformismo por interesse. É só assim, de resto, que os seus promotores podem conceber esta solução de governo. As divergências de filosofia e de orientação não lhes permitem definir um objectivo para além da sobrevivência imediata. Estão condenados a gerir o status quo, esperando que tudo corra bem, e a deixar acumular os problemas, esperando que tudo comece a correr mal o mais tarde possível. O problema é que qualquer adversidade, como vimos no mês passado, tende a expor os limites do governo. E a questão é esta: a confirmar-se o seu descrédito, até quando a actual maioria, mesmo querendo, conseguirá transportar um cadáver que acabará por os contaminar a todos?

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