Tinha pensado esta semana escrever sobre a reação pacóvia de António Costa (perdoem a redundância de ‘pacóvia’ e ‘António Costa’) às declarações do senhor dos caracóis holandês. Mesmo sabendo que Costa não tem um vocabulário numeroso, ainda assim revirei os olhos pelas suas queixas de ‘sexismo’ e ‘racismo’ de Dijsselbloem. Foi o que se lembrou o pobre PM, não soube melhor que inventar para os portugueses uma raça diferenciada e supostamente menor que a raça holandesa. Ou ir para o politicamente correto infantil de afirmar que é um insulto as mulheres serem destinatárias de despesas masculinas – como se alguém, homem ou mulher, gostasse de um significant other sovina, gastando tudo consigo em vez de com as pessoas importantes da sua vida (mulheres lá no meio).

Mas adiante, que vi esta reportagem no fim de semana, sobre a alteração legislativa que permitiu aos pais assistirem às cesarianas nos hospitais públicos, bem como a recente oposição da Ordem dos Médicos. Resolvi, então, concentrar-me num efetivo ataque da Ordem dos Médicos às mulheres, em vez de nos sexismos inventados por Costa e tola esquerda nacional.

Tenho dois filhos e ambos nasceram de cesariana. O primeiro porque não fiz dilatação e o segundo porque passei os últimos dias de gravidez em repouso absoluto, às tantas rompeu-se o saco amniótico e a cesariana, que já havia sido recomendada, foi adiantada. Não tive desgostos pelas cesarianas, confesso. Foram partos cómodos, estive medicada para as dores, tive pós-partos fantásticos e, de resto, escapei de fazer uma episiotomia – que era o que mais me horrorizava em todo o processo. Ainda tentei convencer o médico de que não era precisa, umas semanas antes do parto, mas sem sucesso. Lá está: os médicos não ligam às necessidades e preferências das mães. Somos, evidentemente, umas histéricas (mesmo quando muito lidas e informadas sobre o assunto, como foi o meu caso) e os senhores doutores sabem sempre o que é melhor.

Chegando ao parto por cesariana. Leio que os anestesistas torcem o nariz à presença dos pais no bloco operatório aquando das cesarianas. Ora nas minhas duas cesarianas o pai da criançada claro que esteve presente. No primeiro, na Cruz Vermelha em Lisboa, o anestesista estava tão agoniado e assustado com os perigos desta intrusão que até filmou partes do parto e, no fim, nos ofereceu um cd com os melhores momentos do evento. Não faço ideia já do nome do médico, mas tem em mim uma fã adoradora até ao fim dos tempos. No segundo, noutro privado, não houve filme mas houve a presença do pai. Num país que, no fundo, da direita à esquerda, aprecia muitos os marcadores de diferenciação social, parece que minorar os desconfortos de um parto só deve estar reservado para quem tem dinheiro para pagar hospitais privados ou seguros de saúde – diz a Ordem dos Médicos.

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Ao parecer da OM contra a presença dos pais durante as cesarianas – excetuando aquelas que, por alguma razão, sejam procedimentos mais arriscados – podemos juntar também esta reportagem do Observador sobre a violência obstétrica e os maus tratos durante o parto. E ficamos com uma boa imagem da falta de respeito que algumas franjas das profissões médicas têm pelas mulheres quando estão a ter um filho. (A minha história com o primeiro toque que me fizeram fica para outra ocasião, que não há espaço para tudo.)

Nem vale a pena discutir a bondade, ou falta de, da presença dos pais (ou substituto adequado) durante o parto, das episiotomias, dos toques em excesso, de boçalidades do calibre ‘Dói? Quando fizeste o filho não te doeu!’ (cada profissional de saúde que profere algo vagamente semelhante devia, recomendo eu com parcimónia, ser objeto de tratamento com choques elétricos) e de atos ainda mais abusivos, como os referidos na reportagem do Observador. Tudo isto já está determinado, noutros países europeus os procedimentos amigos das mães estão estabelecidos, a Organização Mundial de Saúde já fez recomendações pertinentes.

Mas por cá várias razões confluem para esta oposição da Ordem dos Médicos a algo que é inegavelmente importante para uma mulher durante um parto. Uma é a mentalidade pacóvia (não se confina ao PM Costa) e salazarenta. Num país iletrado, pobre e, ainda, embasbacado com quem tem dinheiro e estudos, alguns médicos persistem em julgar-se deuses, a quem a populaça deve obedecer quando eles lhes fazem o generoso obséquio de lhes dispensar os serviços médicos. Por sua vez, a população efetivamente pouco escolarizada e informada não tem como contrapor, ou até reclamar, dos abusos dos médicos.

Outra razão é a paixão pelo mau serviço que tanto cultivamos (exceto aos estrangeiros, que achamos melhores e, logo, a quem bajuladoramente fazemos tudo por satisfazer). Não se está mesmo a ver que os atos médicos são para serem feitos da maneira mais cómoda e menos trabalhosa para o médico, em vez da forma mais adequada ao paciente e com menos lesões (físicas e psicológicas)? Mesmo durante uma gravidez ou parto, quando as mulheres estão hormonalmente alteradas e, portanto, emocionalmente e psicologicamente mais vulneráveis?

Outra razão ainda é que estes atos médicos obstétricos só afetam mulheres, e claro que um conjunto maioritário de homens não se vai preocupar em minorar desconfortos e efeitos secundários em procedimentos aos quais nunca serão submetidos. Nem lhes ocorre a pertinência de colocarem o bem-estar de uma mulher acima de tudo. Que excentricidade. Infelizmente não é exclusivo da altura do parto. Diane E. Hoffman e Anita J. Tarzian analisaram, no estudo The Girl Who Cried Pain, The Bias Against Women in the Treatment of Pain, a literatura existente sobre a dor feminina e a reação médica, concluindo que a dor das mulheres é desconsiderada pelos profissionais de saúde, enquanto a masculina é aceite como real. Os sintomas descritos pelos homens são valorizados como bons, enquanto as queixas femininas remetidas para estados emocionais, tendo de provar que estão mesmo doentes. Nas mesmas doenças, a dor nas mulheres é tratada com menos agressividade que a dor masculina, e mais tarde, mesmo apesar de, ao contrário do mito, as mulheres terem uma menor tolerância à dor. Em certos casos, para a mesma doença aos homens são receitados analgésicos enquanto que às mulheres se receitam tranquilizantes (porque, claro, estamos a inventar dores). Tudo isto apesar de, argumenta C. Macpherson, ser uma falha ética subtratar a dor e desvalorizar as queixas.

Pelo que o parecer da Ordem dos Médicos é filho dileto de sexismo puro e retinto. Pior: é misoginia. Mas vamos lá ignorar este ataque às mulheres e concentrarmo-nos no escândalo com o alegado sexismo do caracolinhos holandês.