Em que ponto estamos na chamada “crise dos refugiados”? Ninguém sabe. No Verão, as fotos de crianças no Mediterrâneo inspiraram muitas solidariedades; agora, os relatos de agressões sexuais em Colónia parecem justificar todas as prevenções. No Verão, falavam-nos de deveres humanitários e de vantagens económicas; agora, da necessidade de controlo e de incompatibilidades culturais. Angela Merkel, de braços abertos no Verão, aponta um dedo severo para a saída. Entretanto, o influxo na Alemanha prossegue ao ritmo de mais de 3000 por dia, o que promete adicionar este ano outro milhão ao milhão do ano passado.
Nunca será demais repetir que este é um problema criado fundamentalmente pelo próprio Ocidente. Foi a mistura ocidental de incitação e de inércia que arrastou a guerra na Síria e encheu a Turquia e o Líbano de milhões de deslocados. E foi o bizarro anúncio da chanceler alemã Angela Merkel de que todos seriam bem-vindos, no Verão passado, que pôs esses milhões e muitos outros em marcha para o norte da Europa. A percepção de que as portas estavam abertas, mas que não estariam abertas durante muito tempo, fez muita gente tentar a sorte. As redes de tráfico humano aproveitaram.
Chegados à Europa, os migrantes desapareceram entre os nossos fantasmas e fantasias. Deixaram de ser pessoas reais. Para uns, no Verão passado, eram bons selvagens, prontos para ser moldados pelos nossos valores, ao mesmo tempo que nos permitiam exibir generosidades majestosas; para outros, neste Inverno, são a versão moderna dos invasores bárbaros, determinados a devolver-nos a uma segunda Idade Média, e perante os quais há que provar a firmeza implacável de Carlos Martel. Não há verdadeira discussão, porque ninguém quer argumentar, mas apenas calar os outros, aproveitando as emoções do último incidente: uma criança morta no Mediterrâneo, e só é admissível exigir portas abertas; um crime como o de Colónia, e passa a ser legítimo clamar que todas as portas se fechem.
Acontece que a Europa tem um problema, precisamente porque nem uma coisa nem outra são possíveis. Nem as portas fechadas nem as portas abertas seriam uma simples questão de fronteira, mas uma transformação profunda do nosso modo de vida. Estamos preparados para viver numa fortaleza em que todos seríamos controlados? Ou para renunciar à coesão nacional que tem sido a base das democracias e dos Estados sociais na Europa? Mas ai dos que duvidam. Para uns, só racistas podem questionar a obrigação europeia de acolher e sustentar toda a população do mundo; para outros, só aliados do Estado Islâmico contestarão o encerramento da Europa atrás de arame farpado.
A crise migratória revelou muita coisa. Numa Europa supostamente integrada, as dificuldades continuam a ser pensadas sempre como dificuldades dos outros. No sul, que tem servido sobretudo de ponto de passagem, este é um problema do norte, da Alemanha. No entanto, a crise das migrações afecta todos. Está a dar espaço aos populismos no norte, tal como a crise do euro impulsionou os do sul, separando ainda mais a União Europeia. Pode explicar uma saída do Reino Unido, onde a “questão europeia” é cada vez mais a “questão da imigração”.
Acima de tudo, esta crise mostrou como tudo na Europa está no ar: os governos vão atrás dos últimos acontecimentos, e a opinião pública faz-se e desfaz-se segundo o que é viral nas redes sociais. Chega-nos a imagem de um naufrágio numa praia mediterrânica, e o mundo muda de repente. Chega-nos o relato de agressões numa praça de Colónia, e o mundo muda outra vez. Andamos à mercê da lotaria da actualidade.