Escrevo no corredor das urgências de São José, sentada ao lado do meu pai, já de pulseira no pulso, com uma espera confirmada de pelo menos 4h. Estamos juntos. Não sei quem sofre mais aqui, se os doentes ou quem trata deles. Penso nestes médicos, nestes enfermeiros, auxiliares, técnicos e profissionais de saúde e concluo invariavelmente o mesmo: só podem trabalhar por paixão. Não vejo outra razão.

Temos passado aqui muitas horas de muitos dias, ao longo dos últimos anos. Já vi e vivi momentos radicais, uns de verdadeiro susto, outros de profundo alívio. Voltamos a São José sempre que é preciso, pois para as doenças específicas de pai e mãe, este é sempre o destino mais certeiro. Sempre que entraram na urgência foram bem tratados. Podemos ter esperado eternidades, mas foram sempre bem tratados.

Aqui sentados, ouvimos conversas cruzadas mesmo sem querer. Atrás de nós, um telefonema de alguém que diz a chorar:

– Se eu morrer, morri. Não te preocupes mais comigo. Esquece-me!

Percebo que é muito nova e veio sozinha à urgência. Tenta não chorar e finge que não se importa de ter vindo sozinha. Tem um sotaque remoto e a família deve estar mesmo muito longe. Não sabemos se foi o namorado ou uma amiga que lhe falharam por não saberem estar ao seu lado neste calvário, mas alguma coisa aconteceu e por isso qualquer dor dói logo muito mais.

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Ao lado esquerdo uma velhinha paciente, curvada pela idade, aparentemente também sozinha, mas se calhar com demasiados anos de solidão para receber telefonemas de alguém a quem ainda pode ainda dizer: esquece-me! Não fala, não olha para ninguém, talvez não espere nada de ninguém, não sei.

Do lado direito, sentadas em cadeiras perpendiculares às nossas, duas senhoras africanas falam em voz baixa, constante e sem pausas. Uma delas segura dolorosamente a cabeça com as duas mãos, enquanto a outra tem no colo um saco de plástico transparente com roupas que lhe foram entregues. Sapatos, calças e camisola de alguém sobre quem esperam notícias a qualquer momento.

Alfredo e Ausenda, triagem! Vitor, João e Manuel, triagem! Berta qualquer coisa Prazeres, gabinete três! Não se percebem bem os nomes e ficamos suspensos do olhar uns dos outros.

A caixa do altifalante debita nomes de forma mais ou menos imperativa. Rapazes passam para trás e para a frente em corredores laterais, com carrinhos metálicos cheios de carga. Roupas lavadas e embrulhadas, sacos com não sei quê, tudo num movimento perpétuo. Antes das vozes há sempre um som de campainha a dois tempos que anuncia as vozes. Depois há as que compreendemos logo à primeira, e as que só se decifram passados segundos, como se se tratasse de um puzzle mental para encaixar as peças, que neste caso são sílabas e nem sempre conformes aos verdadeiros nomes. Hipólito, pode ser lido sem acento no ó e faz toda a diferença. Ninguém aqui acha que se chama Ipulito e, por isso, ninguém se levanta nem responde, apesar da estridente insistência.

Bombeiros e bombeiras de cintos largos e botas pesadas atravessam a sala e desaparecem nos corredores mais ao fundo. Avançam sem hesitação por caminhos que não podemos percorrer, estabelecendo prioridades que salvam vidas nos fundos destes corredores.

As ambulâncias chegam e partem. Vêm agitadas e cheias de sirenes que angustiam. Abrem-se alas para deixar passar um rapaz (percebe-se que é um rapaz) que acabou de ter um acidente de mota, mas aparentemente teve a sorte de ser logo apanhado por uma ambulância que estava no trânsito. Ouço os comentários e também ouço alguém, a meia voz, dizer lá dentro que entra como ‘homem morto’. Deus queira que se salve! Às vezes há milagres e eu acredito neles. Já vi muita coisa.

Protásio, gabinete cinco. Pro-tásio! Pro-tá-sio, gabinete cinco! Repetem os nomes e os apelidos que me abstenho de acrescentar para não devassar ninguém, mas são estes nomes que vou ouvindo hoje, enquanto espero e escrevo. Ao meu lado, o meu pai tenta ler, sem conseguir. Prefere ficar no seu silêncio, amorosamente estóico para não pesar a quem hoje o acompanha. Está em plena convalescença de duas pequenas cirurgias e nem sequer aqui estamos por nenhuma delas. Tem 85 anos, a idade em que tudo ou quase tudo se complica. Ponderamos não vir aqui hoje, para não o massacrar mais nestes tempos tão erosivos , mas os médicos ao telefone (abençoada equipa do serviço Saúde 24!) foram peremptórios e prescreveram: urgência, já! Não podia chegar sequer ao fim do dia sem ser visto por especialistas. Seja. Viemos e aqui estamos.

Genaro gabinete dos verdes! Há aqui gente de todos os tamanhos, feitios e idades. Os médicos raramente passam para esta zona, mas daqui a bocado, mais hora menos hora, estaremos do outro lado da porta de vidro, onde a espera é tão demorada como deste lado, mas ao menos vêm-se os médicos e o movimento das macas e pessoas que são levadas de um lado para o outro. E, bem vistas as coisas, já avançamos para outro patamar. Que também é outra dimensão, diga-se de passagem, pois aquilo que se vê ali, felizmente não se vê daqui.

Já passei longas horas nocturnas e diurnas nestes corredores. Se dissesse que já assisti a quase tudo, acho que não estaria muito longe da verdade.

Maria Lurdes, gabinete Bê! Uma voz de Leste suprime todas as letrinhas intermédias e sopra as vogais como quem sopra balões. Ao menos esta fala devagar e até com clareza. A rapariga de trás recebe um telefonema no telemóvel que toca com música de rancho de feira. Atende com voz já menos chorosa.

Técnicos de emergência do INEM acompanham empaticamente os doentes e são, como sempre foram de todas as vezes que precisamos deles, educados e bons profissionais. Nunca encontrei nenhum bombeiro nestes corredores, nem nenhum elemento do INEM que não tivesse um sentido de missão. Percebo-os, pois a opção de vir parar aqui todos os dias deve ser tão difícil que só sobrevivem os que têm paixão pelo sacerdócio.

E por falar em sacerdócio, volto ao início e insisto: médicos, enfermeiros, técnicos, auxiliares e essa imensa legião de batas e fardas de cores diferenciadas dão o litro todos os dias e todas as noites por esta imensa legião de aflitos.

O som de aeroporto que anuncia nomes e mais nomes, continua activo e os vários toques de telemóvel que se sobrepõem a toda a hora, também. Há de tudo; toques de xilofone, música pimba, início de corridas de touros e até um toque de vozes de bebés a rir. Chega a ser cómico. É outro mercado sem limites, este das apps e de tudo o que podemos carregar e descarregar num telemóvel. A feira é permanente em salas de espera como esta, mas também nos comboios e autocarros que apanhamos e nos massacram constantemente com estes fragmentos de músicas improváveis, tocadas muitas oitavas acima.

Eis que nos chamam para o outro lado. Esperamos aqui as horas que ainda faltam, pois entre exames, análises, resultados e consultas podíamos ficar a morar aqui neste acampamento. Nestes corredores tudo é muito mais urgente e a escatologia fere o olhar. Os cheiros colam-se à pele e mais uma vez sinto admiração por quem sobrevive neste espaço medieval. Falo dos doentes, mas também dos médicos, claro.

Aqui passa-se muita coisa ao mesmo tempo e em certas horas é tudo tão grave e fica tudo tão exposto que nos sentimos família uns dos outros. As macas ficam coladas e a respiração é síncrona. De frente para nós está um rapaz que adormeceu numa posição impossível, como se estivesse a dizer um segredo à namorada. Ou como se tivesse capitulado no preciso momento em que pensou dar-lhe um beijo na nuca. Ela não se mexe e tenta ler numa posição de contorcionista para não o acordar, pois dos dois é ele que traz pulseira no pulso. O amor não é só acompanhar à urgência, também é segurar nas carteiras e mochilas uns dos outros, e permanecer assim imóvel, de costas inclinadas e sem amparo, para o namorado poder dormir e descansar uns minutos.

Não consigo descrever a ruína das instalações, sempre sobrelotadas, nem posso escrever sobre todos os pobres e arruinados que aqui param e se acumulam quase em pilhas. Dariam todos um grande filme. Olho já sem ver porque hoje as horas de espera se agravam a cada minuto, por se sucederem os acidentes e outros desastres. Entretanto passaram 7 horas e fico por aqui, no sentido literal e metafórico. Fico também com a certeza de que quem, como alguns destes profissionais de saúde, é capaz de permanecer neste inferno e trabalhar nestas condições dia após dia, salvando vidas após vidas, resgatando solidões atrás de solidões, só pode ter um lugar no céu.