O segundo volume da quadrilogia de Elena Ferrante, “A Amiga Genial”, tem um título sugestivo: “História do Novo Nome”. Gostei particularmente dos quatro livros, que prendem da primeira à última linha, mas o título deste segundo interpelou-me por razões antigas e que nada têm a ver com a narrativa desta autora que, por sinal, assina com identidade falsa, mantendo vivo o mistério sobre o seu verdadeiro nome. Ninguém sabe ao certo quem é Elena Ferrante, pois trata-se de um pseudónimo de autor que opta por escrever mantendo em segredo quem realmente é e, para alimentar o suspense, não se mostra em público, nunca se deixou fotografar e só responde a entrevistas por escrito, através das suas editoras italianas.
Volto ao título e ao tema dos nomes não pela quadrilogia em si mesma, que é excelente (como já dei a entender), mas por ter lido recentemente um artigo sobre as pessoas que sofrem porque não gostam do seu nome próprio, ou demoram eternidades até conseguirem aceitá-lo. Falo por experiência própria, também, uma vez que precisei de décadas para me reconciliar com o meu próprio nome. Comecei por rejeitá-lo em segredo, tentando que ninguém no meu círculo familiar percebesse quanto o detestava, quanto me incomodava. Não queria magoar quem me baptizou, nem desmerecer um nome que me foi dado para honrar uma avó adorável e adorada, mas na verdade este nome pesou-me, e muito, durante longos anos. Depois, acabei por não resistir a confrontar os meus pais e, estupidamente, tive dificuldade em lhes perdoar. Finalmente reconciliei-me e embora não consiga dizer que gosto do nome em si mesmo, agradeço-lhes terem-me dado a possibilidade de ter um nome que (quase) ninguém tem e, por isso mesmo, é diferenciador e acrescenta um traço de originalidade. Bonito ou feio, é meu e nunca encontrei amigos, conhecidos, colegas, chefes ou pares com o mesmo nome.
Li este artigo sobre nomes próprios na revista francesa Psychologies, e fez eco porque me obrigou a voltar atrás. Interpelou-me. Penso que também interpelará outros. Conheço muitas pessoas que não gostam do seu nome próprio e vivem a tentar sossegar esse lado visível da sua identidade, num processo de pacificação nem sempre fácil, feito de altos e baixos, avanços e recuos. Passou-se o mesmo comigo, aliás. Na adolescência é tremendo ter um nome que não seja Rita, Teresa, Filipa, Inês, Mariana, Joana ou outros igualmente bonitos e aceitáveis.
Laurinda, para dar o meu como exemplo e não ofender ninguém enunciando nomes difíceis, é um nome comprido em que se pode tropeçar. Invulgar, velho, rural e em desuso, tem uma terminação que apenas soa bem a estrangeiros (dizem-me que é um nome com música própria, mas bem se vê que não sabem do que falam). Em 1990, o glorioso ano do lançamento da revista K, Miguel Esteves Cardoso escreveu uma crónica muito divertida sobre nomes e apelidos. Com humor e a sua lendária auto-ironia, MEC começou por dizer que também ele gostaria de ter outro apelido, e evoluiu sobre o tema, dizendo que os piores nomes próprios são os que terminam em ‘ete’ e os segundos piores são os que terminam em ‘inda’ — peço desculpa a todas as ‘etes’ e a todas as ‘indas’ que gostam dos seus nomes próprios (como eu devia ter gostado do meu desde o início, pois era, insisto, o da minha avó querida) por vir agora com esta conversa dos nomes e terminações, mas há realmente quem precise de tempo para fazer as pazes com o seu nome. E há quem, através do humor, nos faça rir e relativizar tudo isto. Por incrível que pareça também há pessoas com nomes bons e bonitos que também não gostam nada deles, mas isso é outra história.
Na minha adolescência aconteceu o que agora sei que continua a acontecer com muitos adolescentes que herdaram nomes e sobre-nomes feios, pesados, pouco comuns, embaraçosos ou estranhos. Sentimos-nos diferentes de toda a gente, enchemos-nos de complexos, temos vergonha de ser chamados pelo nome próprio (ou pelo apelido, quando é ele o motivo de risota geral) perante a turma inteira, e fingimos que não ouvimos as coisas parvas que dizem de propósito para nos chatearem. Para mim foi penoso ser muitas vezes obrigada a repetir o nome em voz alta, pois dizia-o sempre em voz muito baixa.
Felizmente esses anos difíceis já passaram, e vivo reconciliada com o meu nome há várias décadas. Mas foi duro. O meu ponto hoje, não é lastimar um nome diferente e porventura menos bonito que os nomes considerados bonitos. O propósito desta crónica é tocar numa matéria que, afinal, é sensível para muitos. A identidade e a marca pessoal constroem-se a partir de um nome próprio e dos apelidos, e não apenas da atitude, das faculdades intelectuais, das capacidades físicas, dos dotes artísticos e das competências académicas e profissionais. Tudo começa no nome, e o próprio Freud, pai da psiquiatria, diz que “o nome é uma das componentes principais da personalidade”. Se assim é, como lidar com os traços de personalidade que já vêm associados aos nomes próprios? E como fazer para aliviar pesos herdados? E como reforçar o valor de um nome que não foi escolhido por nós, mas vem carregado de simbolismo e de expectativas dos nossos pais? Isto, para não falar dos fantasmas familiares que alguns nomes e apelidos revelam, bem como dos conflitos que arrastam…
Conheço uma família a quem morreram 3 filhos bebés, todos baptizados com o mesmo nome. Só o quarto sobreviveu e foi baptizado com esse nome, numa espécie de predestinação. Depois dele, todos os outros filhos receberam variações do mesmíssimo nome, no feminino, no masculino e até no plural. Soa raro, mas é verdade, e até talvez mais comum do que possamos imaginar. Todos conhecemos famílias inteiras que adoptam os nomes próprios dos avós ao longo de gerações e, por isso, os nomes nestas famílias pouco variam e as árvores genealógicas estão cheias de nomes iguais.
Apropriar-se de um nome não é um processo sempre pacífico, muito pelo contrário. Os nomes não só se perpetuam com os seus pesos e memórias de família, como estão atravessados de comparações e significados. Pode ser uma herança leve e divertida, mas também pode ser uma ‘cena’ pesada e sem graça. Há quem carregue o seu nome próprio, ou o seu apelido, como uma cruz. E há quem se sinta pregado a essa cruz.
Aparentemente todas as pessoas têm alguma coisa a dizer sobre o seu nome, seja uma história de família ou um desabafo que fazem pela escolha de que se sentem vítimas. Não sei se são mais os que gostam ou desgostam do nome que lhes foi dado, mas sei que há muitos (demasiados?) que se pudessem teriam escolhido outro completamente diferente. Em todo o caso é bom conhecer quem viva bem com o seu nome e confesso que nos meus anos mais difíceis sentia inveja das Ritas e Filipas, das Joanas e Marianas que povoavam a minha vida. Essas ao menos nunca tiveram crises de identidade provocadas pelo seu nome próprio. Acho eu.
As anedotas, os ditos e escritos sobre nomes e apelidos multiplicam-se e a questão não é de agora. Sempre houve e haverá inclinações e preconceitos, modas e tendências, não há volta a dar. Mesmo que o mundo se inundasse de nomes aparentemente consensuais como João ou Pedro; Maria ou Madalena, haveria sempre quem sofresse o impacto do seu nome. Ou pior, o desgosto de se chamar como não queria ser chamado.
Com os meus alunos, que são muitos e se multiplicam semestre após semestre, tenho tido conversas interessantes e imprevistas sobre os seus nomes próprios, bem como sobre os desafortunados apelidos de alguns. Aos que mostram desconsolo, sublinho que também eu fui vítima da mesma tristeza. Aos que levam com leveza e graça nomes mesmo inconcebíveis (portugueses quero dizer, pois também há nomes extraordinários noutras línguas e os brasileiros conseguem ter uma imaginação delirante) faço uma vénia interior, com admiração pela forma descontraída como usam o seu nome bizarro. E mais, como se fazem valer do facto de terem esse mesmo nome (que pena não poder enunciar aqui os mais absurdos que já ouvi, porque daria para ilustrar ainda melhor esta crónica, mas realmente não quero susceptibilizar ninguém).
Embora haja quem opte por se fazer rebaptizar, tenho dúvidas sobre a eficácia de uma opção por outro nome, pois haverá sempre alguém para fazer de oráculo lembrando que esta pessoa se chama assim, porque antes se chamava assado. Também há anedotas eloquentes sobre estas mudanças de nome, precisamente porque os novos nomes nunca chegam a apagar os antigos. Por outro lado, toda esta realidade convive com uma inclinação, muito portuguesa, para usar diminuitivos e mascarar o nome próprio com abreviaturas ou petit-noms que chegam a soar cómicos. Há famílias e clãs em que ninguém é tratado pelo seu próprio nome, apesar de terem nomes que nenhum precisaria de esconder.
Enfim, o nome, bem como a data do nascimento e a filiação não dependem de nós e nunca serão uma escolha nossa. Assim sendo e porque os nomes e os apelidos pertencem àquilo que nos é imposto, importa perceber que tão importante como recebê-los, é saber aceitá-los. E usá-los, mesmo sem manual de instruções, sabendo que faz sentido apropriarmos-nos de uma marca que, essa sim, é nossa e só nossa. Feita por nós, à nossa medida, como um fato que não assenta bem a mais ninguém.