Já está instalado um terminal no gabinete de António Costa que lhe permita acompanhar o estado do tempo? O meteorologista já chegou a São Bento?

Em Dezembro de 2010, José Sócrates mandou instalar um terminal no seu gabinete em São Bento. Aquilo que preocupava o então primeiro-ministro não eram as altas e baixas pressões atmosféricas ou as subidas e descidas de temperatura mas sim o crescimento dos juros da dívida. José Sócrates, segundo revelaram os seus próximos a David Dinis e Hugo Filipe Coelho, autores do livro “Resgatados. Bastidores da ajuda financeira a Portugal”, vivia dependente da curva que mostrava como estava cada vez mais próximo o limite de 7 por cento para os juros da dívida.

Todos os dias Sócrates anunciava mais uma vitória, mais um plano e todos os dias não parava de olhar, às vezes de dez em dez minutos, para o terminal onde os gráficos lhe garantiam estar a aproximar-se o momento em que não lhe sobraria outra opção senão anunciar esse pedido de resgate que não cessava de negar.

No final de 2017, a dívida pública cresce – e note-se que estava a crescer antes das medidas excepcionais de apoio às vítimas dos incêndios agora anunciadas – mas a intervenção do BCE que desde Março de 2015 pôs em marcha um gigantesco programa de compra de dívidas soberanas tirou-a , por enquanto, do centro das preocupações. O sol, a chuva, o calor, o frio, o fogo e as inundações ocupam agora em 2017 o lugar que a evolução dos juros desempenhou em 2010/2011: são aquele pedaço da realidade que se impõe à propaganda. Os mapas dos incêndios substituíram os gráficos do crescimento dos juros.

Mas oficialmente, em 2017, tal como o foi em 2010, tudo corre no melhor dos mundos, com o Governo a impor uma agenda auto-denominada libertadora que tanto vai das mudanças de sexo para adolescentes à problemática do recheio das bolas de Berlim, sem esquecer essa tremenda causa civilizacional que é o combate à existência de livros para meninos e para meninas.

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Anúncios de choques tecnológicos, auto-estradas, cheques-bebé, TGV… nos governos Sócrates. E do “virar da página da austeridade” e da “reposição dos direitos” no governo Costa. Até que um factor externo, qual meteorito caído dos céus, estraçalha este mundo de anúncios e felicidade. Um mundo que internamente é muito difícil de desmontar, mesmo quando os dados se avolumam e os tiques autoritários de quem governa crescem à vista de todos: em 2009, não causou inquietação que uma grande editora portuguesa desistisse de editar “O Dossiê Sócrates”, da autoria de António Balbino Caldeira, o blogger que primeiro investigou a não-licenciatura de Sócrates. Agora em 2017, os números podem ser o que o Governo quiser enquanto o BCE ajudar.

O que interessa por exemplo que uma auditoria do Tribunal de Contas (TC) tenha revelado que está a aumentar o tempo de espera para a primeira consulta de especialidade e também pelas cirurgias? Mais ainda, o TC acusa do ministério da Saúde de ter falseado os indicadores de desempenho. Mas nenhuma destas revelações consegue beliscar a retórica do “vamos salvar o SNS dos neo-liberais, que já foram liberais, agentes do lobby dos privados”… Os recursos do SNS visam em primeiro lugar garantir os direitos ditos das corporações, a escola pública está transformada numa madrassa e o ministro Vieira da Silva repete os anúncios de sustentabilidade da Segurança Social que já fez anos antes. Só muda o nome do imposto adicional que entretanto passámos a pagar para assegurar essa sustentabilidade anunciada para trinta anos mas que ao fim de cinco já precisa de mais um imposto adicional.

Tudo o que não dê planos chocantes nas televisões, nem mulheres a chorar, nem paisagens desoladas nem mortos caídos no chão é gerível.

Na verdade, se em 2011 Sócrates não tivesse sido obrigado a fazer o pedido de ajuda externa ter-se-ia mantido como primeiro-ministro com o voto do povo e com o apoio ou pelo menos com o silêncio das opiniões públicas e publicadas que, em Maio de 2011, colocavam mais ou menos ao mesmo nível o desastroso estado das finanças do país e o erro de pontuação na letra do hino de campanha do PSD. E em 2017, António Costa ganhou as autárquicas quando já tinham acontecido as mortes de Pedrogão. Por outras palavras, os programas eleitorais da direita, ou mais rigorosamente dizendo da não esquerda ou da esquerda que é um bocadinho menos de esquerda, não chegam para mobilizar os eleitorados. E por isso acabámos politicamente reféns das catástrofes.

Causou estupefacção em Portugal que os galegos fossem para a rua com quatro mortos nos incêndios enquanto por cá nem um protesto se convocara após Pedrogão. Mas não é apenas a rua que é diferente: nos anos 70, as élites em Espanha não se conformaram com o viver de uma revolução e meteram mãos a fazer uma transição, processo inevitavelmente difícil e que as ia confrontar com divisões entre si, problemas que não conseguiam antecipar e que sobretudo lhes exigia convicções fortes.

Agora em 2017 essas mesmas élites recusam em Espanha que um grupo de radicais imponha uma secessão/golpe de estado. Mas claro que isso implica sair da zona de conforto e assumir posições.

Por cá, as nossas élites esperam que a Natureza ou a falência ponham em evidência a mediocridade de quem governa. Enquanto esperam encerram-se no seu mundo de ironias, cinismo, medo de parecer mal e certezas absolutas que acabou em 1975 num processo revolucionário protagonizado pelas personagens sobrantes – os militares – e nos levou já neste século XXI a uma inenarrável experiência governativa que para aí anda plasmada em milhares de páginas assinadas pelo ministério público e agora a esta troika a que não sem um certo carinho chamam geringonça. Ora a geringonça, que nasceu como uma artimanha de António Costa para não sofrer as consequências da sua derrota, rapidamente deixou de ser um meio para se tornar num fim: todos aqueles que a integram sabem que não podem deixar de ser poder, a começar por António Costa. Ao contrário do que se possa pensar, o balanço trágico deste Verão não tornou mais frágeis os acordos entre PS, BE e PCP. Pelo contrário, a contagem dos mortos, o relato do falhanço da Protecção Civil, a descrição da mediocridade dos boys por eles colocados, uniu António Costa, Catarina Martins e Jerónimo de Sousa com o cimento mais poderoso de qualquer ligação: o medo. O governo não pode cair porque os seus protagonistas têm medo do dia seguinte.

Como de costume a oposição de direita, ou “menos de esquerda” confia mais na meteorologia do que nas suas ideias para que esse dia chegue.

Ps. Ana Paula Vitorino não reúne condições para ser titular de uma pasta ministerial. A tese da instrumentalização de Ana Paula Vitorino por José Sócrates exime-a de responsabilidades criminais mas não do julgamento sobre a sua capacidade política. Se a actual ministra do Mar tivesse sido cúmplice de Sócrates tinha agora um problema com a Justiça. Tendo sido por ele instrumentalizada e continuando a ser ministra temos nós o problema de ter no governo alguém destituído da mais elementar qualidade que se exige a quem ocupa um cargo político: saber o que faz.