Os canibais islamistas, os doidos do Profeta, voltaram a atacar. Desta vez a redacção do Charlie Hebdo, que já havia sido atacada em 2011. Mas agora fazendo pelo menos 12 mortos, entre os quais dois desenhadores de que me lembro desde a adolescência: Cabu e, sobretudo, Georges Wolinski. A primeira página do jornal no dia do atentado gozava com o romancista Michel Houellebecq, que acaba de publicar um romance, Submissão, em que, de acordo com os jornais, descreve uma França governada pelo Islão. O editorial, assinado por Bernard Maris (morto no atentado), também gozava com Houellebecq, como igualmente gozava com Houellebecq uma primeira página alternativa, publicada pelo Charlie Hebdo, da autoria de Cabu.

Desde que me lembro, o Charlie Hebdo, que se divertia com tudo, não poupou nunca a Igreja católica nem o judaísmo, por exemplo. E é claro que nunca lhe aconteceu nada disto. Um facto que, apesar de óbvio e banal, deve ser lembrado aos idiotas habituais. Mas as caricaturas de Maomé suscitaram logo o ataque de 2011, e caricaturas posteriores do chamado Estado Islâmico acabaram nisto. Primeiro ponto a reter: com o Islão – melhor dizendo: com o integrismo islâmico na sua abjecção radical – é outra coisa. Segundo ponto a reter: o facto de o jornal, no dia do atentado, conceder muito espaço a um gozo com o livro de um escritor que, seja dito de passagem, vale a pena ser lido, Houellebecq, um livro que, como disse, imagina uma França governada pela sharia, a lei islâmica, projecto que é parte efectiva, e explicitamente afirmada, do integrismo islâmico.

Diz-se que o atentado foi um ataque à liberdade de expressão. É verdade. Mas foi muito mais do que isso: foi um ataque – o último em data de uma grande série cujo ponto simbólico inaugural foi o 11 de Setembro de 2011, embora venha de antes – ao nosso modo de viver no seu conjunto. Para a miséria cultural e humana dos canibais integristas, esse modo de viver, o nosso, tem que ser definitivamente eliminado, não pode continuar a existir.

Quais as reacções? Uma maciça condenação na Europa e nos Estados Unidos, é claro, e em vários outros lugares. Mas também, como se torna habitual nestes casos, que noutros lugares são tantos que quase nem reparamos já neles, um instantâneo movimento de recuo. A Al Jazzera, por exemplo, interrogava-se obscenamente se o jornal francês não teria ido longe demais nas suas caricaturas dos islamistas (traduzido: as vítimas não serão, em última instância, os verdadeiros culpados?) e falava contra os perigos das “amálgamas”, da “islamofobia” e do aproveitamento que a Frente Nacional faria do caso (explicado: o atentado começou logo a dissolver-se na antevisão dos benefícios que as verdadeiras forças do mal poderiam dele retirar). Referi a Al Jazzera, mas reflexões idênticas encontram-se praticamente por todo o lado. Tarik Ramadan, um intelectual muçulmano muito conhecido, professor em Oxford, fez, na BBC, questão mencionar que os muçulmanos não têm mais obrigação de condenar o ataque do que os outros. Ai não?

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Esta reacção revela um padrão de comportamento que conviria analisar porque contribui grandemente para que estes atentados possam existir, é um dos seus solos. Fiquemo-nos pela França. Seria absurdo pedir aos cinco milhões de muçulmanos que lá vivem que batam com a mão no peito e peçam perdão. O Corão contém em si vários elementos de piedade, embora também contenha incitações explícitas à violênca contra cristão e judeus, coisa que por estas bandas se tende a ocultar. E seria falacioso pretender que a violência dele se deduz necessariamente, embora já não o seja pretender que algumas partes a ela manifestamente inclinam. Mas o que é muito legítimo é exigir que a comunidade muçulmana francesa condene de uma forma mais veemente e sistemática do que o faz o que em nome dela é feito. Porque, somando tudo, condena pouco e baixinho.

E não é acidente que seja assim. Diz-se aqui e ali que 99, 99 por cento dos muçulmanos franceses rejeitam o integrismo islâmico. Dá vontade de responder: Tu parles! Deixemo-nos de brincadeiras. A percentagem de radicais é obviamente muito, mas mesmo muito, maior do que esse piedoso número indica. Há em França (continuo a limitar-me à França por comodidade) um grande número de islamistas que quer a destruição do nosso tipo de sociedade. E, repito, os que não pecam dessa perversidade estão longe de reagir como deviam.

Esta quarta-feira lembrei-me, como me acontece muitas vezes, de Fernando Gil, a quem um dia destes voltarei. Em 2003 publiquei em conjunto com ele um livro intitulado Impasses (que continha um apêndice da autoria de Danièle Cohn, “Coisas vistas, coisas ouvidas”). O livro lidava com a situação posterior ao 11 de Setembro e particularmente com a ameaça que o fundamentalismo islâmico representava para a nossa maneira de viver. Fernando Gil tinha uma percepção muito aguda do que estava em jogo e não estava disposto a transigir com a atitude de difusa complacência com o islamismo que reinava naqueles dias (como, à sua maneira, reina nos nossos). E sacrificou muito do tempo que poderia ocupar a escrever a sua última obra de filosofia (que permaneceu inacabada, tendo morrido em 2006) tanto na preparação do livro como nos debates que se lhe sucederam.

O ponto de vista que ele (e eu com ele) defendia em Impasses era exactamente o de que as nossas sociedades ocidentais, bem como aquelas que, independentemente de questões religiosas, partilham alguns dos seus valores, se encontram ameaçadas por uma forma de pensamento arcaica que privilegia a morte em relação à vida. A vontade de matar faz parte da essência do integrismo islâmico, enquanto que as sociedades que partilham os nossos valores cultivam a vontade de viver e constituem-se a partir de um ideal de justiça que, qualquer que seja a sua equivocidade, se encontra num plano oposto ao do integrismo islâmico. Por muito que custe aceitá-lo, o que era verdadeiro em 2003 é também verdadeiro em Janeiro de 2015.

Em homenagem aos desenhadores de Charlie Hebdo e aos polícias assassinados, e pelo prazer da leitura, vou hoje folhear alguns livros de um dos melhores desenhadores que por lá passou, o genial Reiser, morto em 1983. E pensar como a coincidência do gozo com o libro de Houellebecq (que vou encomendar) e do atentado criminoso diz bem do melhor da nossa sociedade, da capacidade de não nos levarmos demasiado a sério a não ser nas coisas fundamentais – e diz o pior possível daquilo que os canibais islamistas valorizam.

Como os combater? Pela força, sem dúvida, e da forma mais eficaz possível. Mas também com a ajuda dos muçulmanos que não partilham a tal vontade de morte. Infelizmente, a possibilidade de uma boa solução no capítulo é algo que deve ser encarado com muito cepticismo. A guerra – é mesmo uma guerra – vai continuar por muito tempo.