A pouco e pouco, nada escapa: governantes, presidentes de câmara, altos funcionários, professores (suspeitos de violar o segredo dos exames), banqueiros, gestores de grandes empresas, dirigentes dos maiores clubes de futebol, presidentes de associações de solidariedade, juízes, magistrados… Há alguma classe ainda fora da lista dos arguidos?
Perante a subida da maré, com a água pelos joelhos, a oligarquia deita a mão a tudo o que promete flutuar. Há os que se escondem atrás das costas largas do “populismo”, queixando-se muito da suposta aliança entre o activismo da justiça e o sensacionalismo da imprensa. Mas que querem? Se houve quebra da lei, a justiça não deve actuar? Se a justiça actua, a imprensa deve conservar-se silenciosa?
Há ainda os que preferem escarnecer: uns bilhetes de futebol, por amor de Deus. Pois, uns bilhetes de futebol. Mas uns bilhetes de futebol a troco de quê? As autoridades têm a obrigação de investigar. Pequenos favores podem ser a impressão digital de grandes promiscuidades, isto é, de um regime em que a lei não é igual para todos, por exemplo, para aqueles que podem usar bilhetes de futebol para acelerar processos. Mário Centeno, depois da sua imprudência, terá certamente sido o primeiro interessado em que tudo fosse esclarecido.
Percebemos porque o regime anda tão nervoso. Para além das prevaricações que possam ter ocorrido e ser provadas em tribunal, o que começa a ficar à mostra é a rede opaca de contactos, de cumplicidades, de jeitos e de favores que une entre si a oligarquia do regime. Chamamos-lhe “corrupção”, e com essa palavra, pensamos em gente a enriquecer ilegalmente. Mas — e se esta for também, para além de quaisquer ganhos ilegais, a maneira de o regime funcionar? E se tivermos aqui, nos arranjos e nas amizades que ligam os seus figurantes uns aos outros, a relojoaria profunda do regime, sem a qual não pode existir?
Talvez esta rede seja a explicação para esse facto bizarro, que é os políticos proporem e aprovarem leis que depois os apanham. Julgarão porventura que, graças ao sistema de que fazem parte, nunca estarão sob o seu alcance? Que haverá sempre uma toga amiga a cobrir eventuais processos? Compreendemos também assim como, quando lhes acontece terem subitamente de enfrentar um magistrado, alegam com tanta convicção que estão a ser perseguidos. De facto, num regime em que toda a gente anda geralmente protegida, que outra razão poderia haver para alguém ser suspeito e acusado, a não ser uma perseguição?
Nas situações mais desesperadas, há um ultimo recurso: as tribunas televisivas e eleitorais. No Brasil, Lula da Silva dá o exemplo: condenado por unanimidade em última instância, com provas que a defesa não conseguiu refutar, ei-lo decidido a ir a votos, como se a democracia tivesse sido inventada para livrar políticos corruptos de expiar as culpas. Talvez resulte, porque o povo já uma vez escolheu Barrabás. Mas isto, segundo os mestres de moral, já não é “populismo”: populismo é denunciar e investigar a corrupção, não é usar eleições para fugir à prisão. Por cá, Marques Mendes prevê que José Sócrates possa ser tentado pelo mesmo expediente. Veremos. O Dr. Johnson disse que o patriotismo era o último refúgio dos canalhas. Estará a democracia, em certos países, destinada a ser o último refúgio dos arguidos e dos condenados?