Os regimes autoritários, à medida que se vão estendendo no tempo, tendem a senilizar-se, tomando decisões grotescas que repetem absurdos do passado e revelando um medo terrível de fantasmas.

A proibição de qualquer filme, ou obra de arte em geral, apenas desperta maior curiosidade e procura, mas o Kremlin volta a repetir um erro tão velho como o mundo. O exemplo mais flagrante é a recente proibição na Rússia da exibição de “A Morte de Estaline”, filme do realizador inglês Armando Iannucci.

Não vou revelar o conteúdo do filme, mas trata-se de um trabalho que procura chamar a atenção, através do humor negro, para a sede de poder, para aquilo que são capazes de fazer os homens que querem ocupar o primeiro lugar sem olhar aos meios. Cronologicamente a fita abrange um curto espaço de tempo: decorre em Março de 1953, quando Estaline morre e Nikita Khruschov toma o poder depois de liquidar Lavrenti Beria, o omnipotente carrasco do ditador.

As explicações para o adiamento da estreia e, depois, da exibição, são as mais variadas. Vladimir Medinsky, ministro da Cultura da Rússia que já foi várias vezes acusado de ter plagiado a tese de doutoramento, considera que “o filme ridiculariza a história do nosso país e denigre a memória dos nossos cidadãos que conquistaram o fascismo”.

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Trata-se de uma acusação completamente delirante se tivermos em conta que não estamos perante uma fita com pretensões históricas, mas uma comédia de humor negro à velha maneira britânica. Essa afirmação só pode ser feita por um historiador (e Medinsky di-lo ser) que, educado nos princípios e na época do “realismo socialista”, não consegue compreender que a morte do ditador Estaline e muitos dos factos que a rodearam podem ser caricaturados, sem que percam os seus aspectos cruéis e desumanos.

É verdade que determinados episódios do filme têm por base factos reais, mas apenas para serem transformados em cenas surrealistas e mostrar a monstruosidade do regime criado por Estaline. Beria, Khruschov, Malenkov e outros camaradas do ditador são figuras históricas reais mas, num filme deste tipo, são trabalhadas de forma a transmitir a luta pelo poder num registo de humor negro.

A diretora da Sociedade Histórica e Militar Russa declarou que “A Morte de Estaline” é “desprezível”, acrescentando que “é um mau filme, é um filme aborrecido e é vil, repugnante e nojento”.

Volto a repetir: para aqueles que não saíram do “realismo socialista” e do “heroísmo comunista”, da propaganda de regimes totalitários como a União Soviética comunista e a Alemanha nazi, o filme é realmente repugnante e nojento. Por exemplo, quem deu autorização ao realizador, ainda por cima estrangeiro, inglês, de pôr na boca de membros da direcção do Partido Comunista Soviético frases tão “insultuosas” quando descobrem o ditador Estaline prostrado no chão, referindo-se ao odor exalado pelo corpo? Realmente é uma coisa mesmo “repugnante”, porque os ditadores não morrem como os comuns dos mortais, devem partir deste mundo de forma muito especial.

O Partido Comunista Russo, o segundo partido com mais assentos no parlamento russo e um dos mais obedientes servos do Kremlin, acusou o filme de ser “uma forma de pressão psicológica contra o país”.

Na realidade, há uma ou outra personagem que não coincide com o imaginário comunista. Por exemplo, Gueorgui Jukov, marechal que comandou as tropas soviéticas na Segunda Guerra Mundial, não se assemelha a um ícone, tendo traços de fanfarronice caricata. Mas eu vi o filme e, se realmente os russos são assim tão fracos psicologicamente como dizem os comunistas, é porque algo está muito mal no reino de Vladimir Putin.

Aqui é de salientar que os comunistas, e não me refiro apenas aos russos, têm uma ideia muito má das massas, do povo, infantilizando-o até ao ponto de lhe passar uma certidão de incapacidade total de pensar.

Como uma das salas de cinema de Moscovo decidiu avançar para a exibição do filme, alegando que a ordem do Ministério da Cultura não tinha sido dada por escrito, os bilhetes esgotaram-se rapidamente não só para a estreia, mas para os dias de Fevereiro em que a fita poderia ser exibida. Disse poderia, porque forças policiais entraram no edifício e fizeram “reinar a lei”.

Proibido nos cinemas, já pode ser visto em numerosas cópias piratas de má qualidade na Internet, mas isso não trava os curiosos e o regime autoritário volta a fazer figura de ridículo.

A autocracia russa tem sérias razões para proibir o filme se se considerar que está perante um espelho, o que parece estar a acontecer. Os actuais dirigentes vêem-se retratados de forma precisa nas personagens do filme. Bem diz o ditado russo: “Não acuses o retrato se tens a cara torta”.

Penso que o filme não é de tão grande qualidade e tão perigoso para ser proibido, mas o melhor é vê-lo quando começar a ser exibido em Portugal.

PS. Muita atenção à lista de oligarcas e políticos russos que poderão ser alvo de sanções por parte dos Estados Unidos. São mais de 200, entre os quais o primeiro-ministro Dmitri Medvedev e o ministro dos Negócios Estrangeiros da Rússia, Serguei Lavrov. Putin comentou que “os cães ladram e a caravana passa”, mas as coisas não poderão ser assim tão simples se oligarcas e políticos russos virem as suas contas congeladas e não puderem gozar das suas fortunas no Ocidente.