Lembram-se da parte de O Leque de Lady Windermere, de Oscar Wilde, quando Lord Windermere desconfia que a sua lady, cumulativamente proprietária do leque recém-descoberto em casa de Lord Darlington, está sozinha em casa deste homem solteiro? E que, depois de ameaça de pancadaria entre marido e dono da casa, Mrs Erlynne se mostra ao grupo de cavalheiros (para salvar Lady Windermere), arruinando a reputação ao revelar-se em casa de um homem com o qual, claro, só pode ter uma ligação pecaminosa? Ou, desta vez em Um Marido Ideal, do mesmo Wilde, da suspeita de adultério que varre Sir Robert Chiltern ao ler uma carta da sua mulher dizendo ao amigo de ambos, Lord Goring, da necessidade de se encontrarem?

Mais de cem anos depois da primeira encenação, seria um insulto a Wilde escrever que as suas peças têm uma moral. Porque, lá está, Wilde escreveu para ridicularizar a mania de se fazerem julgamentos morais sobre outros, partindo dos pecadilhos de dimensão variável que todos temos na vida. O Leque de Lady Windermere é uma ‘play about a good woman’ (diz na minha edição) e a boa mulher é a colorida Mrs Erlynne, que apesar da vida sentimental diversificada se sacrifica por Lady Windermere. E em Um Marido Ideal temos um político honrado e promissor, mesmo tendo começado a sua carreira vendendo segredos de Estado a um especulador financeiro (já existiam e tinham má fama, sim). De caminho, Wilde lá mostrava quão injusto era regar com tanta desconfiança as circunstâncias em que uma mulher se encontra com um homem.

Pegando em toda esta suspeição e num caso nacional, tenho boas e más notícias sobre o nosso país. Li no Observador há dias que a revista Nova Gente fez uma capa informando que duas senhoras ‘solteiras [e escreve os nomes] saem com o mesmo homem casado’. Não me quero deter na discussão sobre a imprensa tablóide nem no facto de, ao contrário do que escreve a Nova Gente, as duas solteiras não ‘sairem’ com o identificado homem casado, nem do tal homem casado mostrado numa das fotografias ser afinal outro homem, nem, ainda, de todos os citados já terem manifestado a intenção de processar a Nova Gente. Não: interessa-me a forma como a Nova Gente fez as suas alusões, falsas ou não.

Reparem: apesar do homem ser casado e as senhoras solteiras, supondo-se que elas são livres de sair com quem bem entendem enquanto que o homem casado já terá mais restrições, a notícia de capa da Nova Gente não é ‘homem casado sai com duas mulheres solteiras’. Não, as duas mulheres solteiras, essas harpias, é que saem com o homem casado, que se calhar até o faz a contragosto, o pobre que está a ser transviado. A culpa de todos os males do mundo, já se sabe desde Eva, é das mulheres.

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Mas há mais. A revista alega que as duas senhoras ‘saem’ com um determinado homem, e este ‘saem’ não é um ‘saem’ inocente e casual, é um ‘saem’ que indicia uma qualquer ligação amorosa entre os intervenientes, e daí a explicação de que elas são solteiras – e duas – e ele é casado. E o que mostra para ilustrar este ‘saem’ amoroso? Beijos apaixonados? Mãos em sítios inconvenientes? Contacto físico abundante? Não, a Nova Gente mostra (na capa, que foi o que vi e suponho que lá colocaram o mais suculento) uma fotografia de um homem e uma mulher ao lado um do outro e outra fotografia de outro homem e outra mulher deitados lado a lado numa praia. Só para contrariar, ninguém toca em ninguém.

Ora bem, para a moral vitoriana era suspeita a ligação de um homem e de uma mulher quando se encontravam escondidos do mundo. A Nova Gente, e porventura os seus consumidores, são gente de moral ainda mais afunilada: qualquer homem e qualquer mulher que se encontrem, mesmo em público, têm provavelmente uma relação amorosa. A revista apresenta, ainda, outra prova cristalina de uma ligação entre uma das solteiras e o (falso) homem casado: ele até ajuda a cuidar do filho pequeno dela. Num país em que, segundo um relatório do INE de 2010, apenas 6% da prestação de cuidados a menores dentro da família é feita por homens, vê-se logo que nenhum homem ajuda com uma criança se não tiver segundas intenções para com a sua mãe.

As más notícias são estas: a Nova Gente, mesmo com uma mentira, fez um auto-retrato de um país machista, controleiro, onde os homens mantêm as crianças à distância (mesmo, ou sobretudo, as suas) e era o que faltava mudarem uma fralda, as mulheres respeitáveis não andam acompanhadas de homens (razão tem o Islão ao afirmar que, quando um homem e uma mulher se encontram, lá estará também um terceiro interveniente, o diabo himself), e que torna os britânicos de fins de oitocentos uns permissivos quase depravados.

As boas notícias? Estamos mesmo no ponto para algum argumentista ou escritor nos vir satirizar (e ao nosso pequeno mundo), qual Oscar Wilde.