No ano em que se assinala o centenário da revolução comunista de Outubro de 1917, muitas obras serão publicadas a esse propósito e algumas provocarão acesa discussão, nomeadamente sobre o papel das principais personagens nesses acontecimentos. A História não se faz com “ses”, mas permite-nos, se nos basearmos em documentos e fontes fidedignas, arriscar a desenhar cenários possíveis.
Isto vem a propósito da edição pelo jornal Expresso do livro “Estaline” do historiador Simon Sebag Montefiore e do prefácio escrito para ele por Francisco Louçã.
Francisco Louçã assinala que a biografia de Estaline começa apenas “quando o biografado, já tem 44 anos, está no auge do seu poder, e por isso só cobre os últimos 21 anos da sua vida”, deixando de fora importantes momentos. Estou de acordo, pois isso permitiria também abordar algumas das imprecisões (ou talvez deturpações conscientes) escritas pelo próprio Dr. Louçã.
Muitas delas estão contidas no último parágrafo desse prefácio: “A tragédia do século XX é esta: uma revolução contra uma ditadura e uma guerra, que libertou milhões de servos e prometeu o fim da exploração, que se anunciou como a alvorada de uma humanidade cooperante, foi dominada por uma burocracia fechada, temerosa e por isso agressiva, cujo poder se ergueu sobre uma pirâmide de vítimas”.
Ora, como é sabido, a revolução comunista não foi feita contra uma ditadura, mas contra uma democracia pluralista saída da revolução de Fevereiro de 1917. Foi este pluralismo, por exemplo, que permitiu o regresso de Vladimir Lenine e Lev Trotski à Rússia e deixou escapar o poder para as mãos dos bolcheviques. Foi este pluralismo que convocou eleições para a Assembleia Constituinte em 1918, acto eleitoral livre onde os bolcheviques saíram derrotados e, por isso, não a deixaram ir além da primeira sessão. As eleições livres e pluralistas seguintes realizaram-se apenas em 1989, e os comunistas saíram delas fortemente enfraquecidos.
Quanto à guerra, ainda hoje os historiadores discutem se foi correcto ou não a Rússia continuar a combater na Primeira Guerra Mundial e talvez a democracia pluralista tivesse ganho com a saída do país do conflito, mas os líderes do Governo Provisório que dirigiu a Rússia entre Fevereiro e Outubro de 1917 tencionavam participar na vitória sobre a Alemanha, que já não estava muito distante.
Mas, quando se fala da Rússia nesta guerra, não se pode deixar de assinalar o comportamento do dirigente bolchevique Vladimir Lenine. Ele não teve pejo de receber dinheiro dos alemães para realizar o seu objectivo: a derrota da Rússia na guerra, e de ser por eles transportado numa carruagem selada da Suíça para a Suécia, de onde depois seguiu para Petrogrado. Cada um que decida se se tratou um acto de “traição nacional” ou de “maquiavelismo político”.
É estranho ler que foram libertados “milhões de servos”, pois a servidão foi abolida na Rússia em Fevereiro de 1861 e, após a revolução de Fevereiro, os habitantes desse país passaram a ser cidadãos da República com direitos iguais perante a lei.
Quanto à promessa de fim exploração e ao início da humanidade cooperante, isso não deixou de ser uma miragem, pintada com cada vez mais sangue pelos bolcheviques. A violência, a carnificina, a repressão, não começaram com Estaline, mas com Lenine e Trotski. Se este último tivesse herdado o poder na URSS, nada indica que o sistema seria menos cruel.
Apenas um exemplo do “humanismo” de Lénine num telegrama por ele escrito:” Camaradas! O levantamento dos kulakes [assim os bolcheviques denominavam os camponeses ricos] de cinco distritos deve levar ao seu implacável esmagamento. Isso é exigido pelo interesse de toda a revolução, pois agora tem lugar a “última e decisiva guerra” contra os kulaques. É preciso dar um exemplo.1) Enforcar (enforcar obrigatoriamente para que o povo veja) um mínimo de conhecidos kulaques, ricaços, vampiros. 2) Publicar os seus nomes. 3) Confiscar-lhes todos os cereais. 4) Fazer reféns, em conformidade com o telegrama ontem enviado.Fazer com que, num raio de mais de cem milhas, o povo veja, trema, saiba, grita: esganam e esganarão os kulaques vampiros. Telegrafem a informar que receberam e executaram”.
O “humanismo” de Trotski ficou bem presente no esmagamento da revolta de Kronstadt de Março de 1918, a primeira e última revolta de marinheiros revolucionários, a maior parte deles descontentes e decepcionados com a nova ditadura comunista que eles tinham ajudado a chegar ao poder. Os rebeldes exigiam uma série de reformas, entre as quais a eleição de novos sovietes, a inclusão de partidos socialistas e grupos anarquistas nos novos sovietes e o fim do monopólio bolchevique no poder, a liberdade económica para camponeses e operários, a dissolução dos órgãos burocráticos do governo criados durante a guerra civil e a restauração de direitos civis da classe trabalhadora.
Em Kazan, no mesmo ano de 1918, Trotski declarava num comício: “Nós apreciamos a ciência, a arte, queremos tornar a arte, a ciência, todas as escolas, universidades acessíveis a todo o povo. Mas se os nossos inimigos de classe quiserem mostrar-nos novamente que tudo isso existe só para eles, diremos: morte ao teatro, à ciência, à arte”. Levado pelo apoio da multidão, Trotski acrescentou: “Nós, camaradas, gostamos do Sol, que nos ilumina, mas se os ricos e os violadores quiserem monopolizar o Sol, diremos: que o Sol se apague e reinem as trevas, a escuridão eterna”.
O regime comunista foi construído com base em princípios que apenas podiam conduzir à violência e à repressão: a não tolerância do pluralismo político no país e o princípio do “centralismo democrático” no interior do partido. Por isso, todas as experiências comunistas no século XX terminaram sempre em ditaduras cruéis.
Por isso, importa assinalar com verdade a revolução de Fevereiro, comparável ao movimento do 25 de Abril de 1974, por ter aberto a via da democracia na Rússia, e analisar, com base em factos, as consequências do golpe de Estado comunista de Novembro de 1917, para que não vençam versões “recauchutadas” e “modernizadas” do totalitarismo da extrema-esquerda.