Os “famosos” Trabalhos Para Casa (TPC) estão longe de ser um tema consensual, particularmente no 1º Ciclo (e é sobre esta faixa etária que incide este artigo, uma vez que para o 2º e 3º Ciclos os argumentos poderão ser um pouco diferentes). Se, por um lado, há quem os defenda como instrumento pedagógico, há também quem os considere dispensáveis e questione a sua utilidade. Antes de começar este texto, devo confessar que me encontro neste segundo grupo, pelos motivos que vou explicar a seguir. No entanto, não existem verdades absolutas, pelo que haverá certamente quem tenha uma posição diferente da minha e também casos particulares que não se encaixam nestes princípios gerais.

Explicado o enquadramento, penso que é importante percebermos que o “trabalho” das nossas crianças é estudar. Assim, faz sentido olharmos para o Código do Trabalho para esclarecer alguns aspectos:

Artigo 73º: 1 – O período normal de trabalho do menor não pode ser superior a oito horas em cada dia e a quarenta horas em cada semana.

Artigo 75º: 1 – O trabalhador menor não pode prestar trabalho suplementar.

Artigo 76º: 1 – É proibido o trabalho do menor com idade inferior a 16 anos entre as 20 horas de um dia e as 7 horas do dia seguinte.

Artigo 79º: 1 – O descanso semanal do menor tem a duração de dois dias, se possível, consecutivos, em cada período de sete dias (…).

Ao observarmos todos estes artigos, rapidamente percebemos que, do ponto de vista legal, a existência dos TPC é, no mínimo, questionável, pois atenta claramente contra os seus direitos. É claro, não me parece que valha a pena comentar muito mais…

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No entanto, há também quem defenda que existem algumas vantagens, seja do ponto de vista pedagógico, seja do ponto de vista do desenvolvimento das crianças. O problema é que a realidade não espelha bem essas possíveis vantagens teóricas, ou seja, há uma discrepância grande entre o que é idealizado e o que acontece realmente. Passo a explicar o meu ponto de vista.

Relativamente às desvantagens, algumas das principais são as seguintes.

Retiram tempo livre à criança e à família. Brincar é um direito fundamental de todas as crianças. É uma necessidade básica para o seu crescimento, desenvolvimento e Felicidade, pelo que é criminoso perceber que as nossas crianças têm menos tempo ao ar livre do que muitos presidiários. As crianças precisam de conhecer o seu corpo e de se relacionar com os outros e os tempos de brincadeira livre e não estruturada são imprescindíveis. Para além disso, mesmo para a aprendizagem se consolidar, é fundamental haver momentos de descanso, em que a actividade intelectual “abranda” um pouco para dar lugar às actividades lúdicas e de prazer.

São uma fonte de stress. Todos são afectados por esse stress, mas as crianças parecem ser particularmente vulneráveis. Há estudos que demonstram que o stress em idades precoces aumenta o risco de ansiedade e depressão na idade adulta, pelo que é um assunto bastante sério e que deve ser levado em atenção.

Condicionam o estado de saúde das crianças. Está bem estabelecido que os TPC podem ser um factor de risco para obesidade, visto serem uma actividade sedentária e que podem também interferir com o sono, levando a situações de privação (por mais tarde que as crianças se deitem, têm sempre que acordar cedo no dia seguinte). Para além disso, o facto de terem que carregar mochilas cada vez mais pesadas aumenta a probabilidade de desenvolver problemas ortopédicos, nomeadamente ao nível da coluna vertebral.

Há ainda algumas questões controversas relacionadas com os TPC que, apesar de não terem uma resposta objectiva, devem servir como ponto de partida para uma reflexão séria e sensata. Sei que são discutíveis e que podem levar a discussões bem acesas, mas vale a pena pensar nelas. Alguns exemplos são os seguintes:

1. Pode a escola estender-se para além da sala de aula? Faz sentido que os professores interfiram de forma deliberada na vida pessoal e familiar das crianças?

2. Será a actividade intelectual mais valiosa do que a não intelectual, particularmente nesta fase da vida? (Durante o meu curso de Medicina, todos os dias lia à entrada da minha Faculdade uma frase que dizia “Um médico que só sabe Medicina nem Medicina sabe” e não podia concordar mais…)

3. Se os TPC ajudam a criança a tornar-se responsável, a decisão de não os fazer é sinónimo de irresponsabilidade ou, pelo contrário, pode ser encarada como uma opção consciente e responsável? Há responsabilização dos alunos nas salas de aula, nomeadamente o envolvimento nas escolhas que são feitas diariamente?

4. Serão os TPC sinónimo de currículo escolar rigoroso ou será apenas um rigor “aparente” para compensar o trabalho realizado na escola?

5. Serão os TPC uma forma de colocar todos os alunos em pé de igualdade ou aumentam ainda mais as desigualdades? É completamente diferente fazer os trabalhos num ambiente calmo e com todas as condições físicas e de envolvência necessárias ou fazê-los num ambiente de gritos e confusão, com os cadernos em cima dos joelhos…

Muito haveria ainda por dizer, mas parece-me que obrigar as crianças a fazer TPC só porque sim é assumir que elas são claramente preguiçosas e irresponsáveis e que não se pode confiar nelas (motivo pelo qual têm que ser forçadas a aprender) e isso não podia ser mais errado! Lamento desapontar algumas pessoas, mas eu não acredito no lema “sofrer é uma virtude” e, mesmo que acreditasse, não será seguramente aos 6-7 anos que isso se aprende.

Sei que hoje em dia as turmas têm demasiados alunos e os programas são extensos, mas não é massacrando as crianças que se vai conseguir corrigir isso. É preciso ter coragem de assumir que alguma coisa está mal e não é à custa de trabalhos forçados que se vai conseguir alterar seja o que for. O problema é que com tantas burocracias e avaliações, os professores muitas vezes ficam presos num sistema que não permite tomar outro tipo de decisões. Mas tem que permitir, porque as crianças têm muitos anos para ser adultos, mas muito pouco tempo para ser crianças! É um crime não as deixar aproveitar esses anos!

Por fim, uma palavra para os super-pais, que são cada vez mais frequentes. Hoje em dia temos muitos pais que quase querem ser “profissionais” nesse papel e que se preocupam mais com o futuro dos filhos do que com o seu presente. É urgente perceber que o caminho se faz mesmo andando e não tudo à pressa, como se fosse “para ontem” e que as crianças não têm que ser óptimas em tudo. Se se encaixa neste perfil, deixo-lhe o último conselho deste texto: MUDE IMEDIATAMENTE! O seu filho não merece ter um pai/mãe assim, mas precisa seguramente do seu Amor, tempo e disponibilidade para ser Feliz…

Pediatra no Hospital de Viana do Castelo. Autor do blogue Pediatria Para Todos.
‘Caderno de Apontamentos’ é uma coluna que discute temas relacionados com a Educação, através de um autor convidado.