A possibilidade de Donald Trump se tornar o próximo Presidente dos Estados Unidos assusta muita gente. É de facto possível; mas não me parece provável. Se apostasse, não colocaria fichas num homem que, nos últimos meses, alienou partes substanciais do eleitorado, das mulheres às várias minorias étnicas. Após duas semanas no país, depois de muitas conversas e redobrada atenção, uma coisa se tornou para mim evidente: o homem é uma charada embrulhada num mistério dentro de um enigma (a frase é atribuída a Churchill).

A charada decorre da impossibilidade de saber exactamente o que esperar de Trump se Trump, como (não) se prevê, vier a ser Presidente dos EUA. “The” Donald (”o” Donald, como lhe chama Obama) promete tudo ou quase tudo. Ou, ao invés, não promete nada?

Promessas impossíveis: o México pagará a muralha a construir ao longo da fronteira sul, mais alta do que a Grande Muralha da China, uma “beleza artística” de betão armada e aço, que um dia (diz Trump) será chamada “Muralha Trump”; à pergunta “e se o México recusar?”, ele responde que os EUA retaliarão (com direitos aduaneiros, cortes na ajuda, pagamentos por ilegais, cancelamento de vistos, etc.). Noutro plano, promete fazer crescer a economia pelo menos 6% (não sucede há mais de 35 anos), reduzir a dívida através da redução do desperdício e cortar o orçamento em 20% exclusivamente pela renegociação; ao mesmo tempo, quer reconstruir a infraestrutura de transportes e diminuir os impostos sobre pessoas e empresas.

Coisas inadmissíveis: proibir temporariamente os muçulmanos estrangeiros de entrar nos EUA; deportar os 11 milhões de imigrantes ilegais.

Coisas preocupantes: abolir o direito de cidadania com base no nascimento (quem nasce nos EUA é americano) e acabar com as zonas livres de armas (nas bases militares e escolas) no primeiro dia de presidência. Reintroduzir a tortura (da água, por exemplo), nem que seja porque “eles merecem”.

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Coisas flutuantes: Donald, que já foi a favor do direito ao aborto, promete agora “algum tipo” de punição para as mulheres que abortam (está a pensar nisso). E quanto aos vistos para imigrantes altamente especializados? Eles já foram maus para os trabalhadores americanos, bons para o país, outra vez maus, necessários (“estou a mudar”), agora são maus de novo.

Coisas demagógicas: enquanto for Presidente, Trump não tirará um só dia de férias. E imporá taxas alfandegárias significativas a importações de países como a China ou o México.

Promessas de esquerda (de direita são quase todas as outras): recusa de reduzir as despesas federais com os programas sociais Medicare, Medicaid e Segurança Social (o Obamacare é outra coisa, claro). Financiar o tratamento dos dependentes de heroína.

Coisas que vão ao encontro do discurso do interlocutor (colectivo): prever a pena de morte para assassinos de polícias. E ainda: “Vamos tornar as nossas forças armadas tão fortes e poderosas e tão incríveis (…)” que “ninguém se vai meter connosco, folks”.

Promessas impossíveis, para eleitor ouvir, demagógicas, de esquerda ou de direita, mudanças constantes. Uma charada. Mas talvez Donald Trump não faça de facto promessas, talvez se recuse a fazê-las, tornando impossível saber exactamente o que fará quando (se) for Presidente. Ao fazer promessas enquanto se recusa a fazer promessas, ao contradizer-se constantemente, embrulhando a charada num mistério, Trump triunfa sobre o que seria para qualquer outro candidato uma derrota anunciada: a incerteza nebulosa do seu programa. No fundo não há programa e resta uma certeza: Donald Trump não será constrangido pelas promessas que fez, porque afinal não as fez, e fará o que tiver de fazer para tornar a América de novo Grande. E é nesse mistério assumido que radica grande parte do seu apelo.

Trump é Trump. Tudo o que diz, desdiz e rediz, sem prometer e se comprometer, tem por fundamento primeiro de credibilidade a sua vontade e a força que ela carreia. “I am what I am and what I am is Trump” (eu sou o que sou e o que eu sou é Trump). Vai ser assim, mesmo que seja impossível, inadmissível, preocupante ou demagógico, porque eu (ele) digo que vai ser assim. Acreditem em mim, afirma, e não me peçam promessa pois importa “ser flexível” e agir em função das necessidades, das conveniências e das circunstâncias na negociação em causa.

Dizem alguns tratar-se de um discurso típico de um certo tipo de autoritarismo, de alguém que se julga mais capaz do que a generalidade do género humano; que vê por exemplo em Putin uma alma gémea, com quem se pode dar bem; alguém cujo entendimento do exercício do poder, referiu Andrew Sullivan, veterano jornalista e blogger, editor do “The New Republic” nos anos 90, é inimigo da ideia americana de dispersão do poder, com raízes na filosofia liberal e nos “federalist papers”, já para não falar na Constituição americana. Trump não tem interesse na política, sublinha Sullivan, apenas no poder. E por isso ataca com consistência (por uma vez) o “establishment” político, Washington e todos os seus avatares.

Esta é uma charada embrulhada num mistério dentro de um enigma: por que razão Trump pode hoje aspirar a tornar-se o próximo Presidente do mais poderoso país do Mundo? Como conseguiu ele, com ideias radicais, mutantes, histriónicas, ultrajantes até, vencer as primárias do partido republicano, que nalguns pontos contraria? Que razão explica a sua popularidade?

Resolver o puzzle Trump, deslindar o enigma, não das razões da popularidade que são óbvias, mas da crescente legitimidade em crer num desfecho feliz (para si), implica recorrer a um conjunto largo de factores explicativos interligados. A televisão americana, não apenas as grandes cadeias nacionais mas as estações de televisão estatais ou até regionais, enchem os seus tempos noticiosos com notícias sobre ele. Não há dia, eu diria que não há hora, em que Trump não esteja em simultâneo em centenas de televisões. Os seus apoiantes, com frequência, reconhecem-lhe os defeitos, os exageros, a falta de programa, os ziguezagues, e quase sempre concluem com um “so what?” (e então?). Trump é o anti-sistema, o portador de esperança, o “bullier” que pode assustar os verdadeiros monstros: os políticos politiqueiros, as desigualdades, o custo de vida, o desemprego, a falta de esperança no futuro. Em Trump votam sobretudo os deserdados do sonho americano. Deixem-me que vos fale deles.

São milhões: os novos pobres americanos, ou antes – permitam-me a neo-expressão -, os quase pobres americanos, provêm em parte da antiga classe média cujo nível de vida se tem degradado. Vivem menos anos do que os ricos (o fosso chega hoje aos 14 anos para homens nascidos nos anos 50); recebem em média menos de 20 mil dólares por ano e são 40% da população (65% abaixo dos 40 mil); estes americanos não vivem a vida luxuosa de Rodeo Drive ou Wall Street, vivem-na a tentar sobreviver diariamente. A desigualdade aumentou muito (veja-se um estudo de 2014 do PewResearchCenter). Num país com tanta riqueza exposta (ostentada?) – sendo certo que a pobreza também choca, basta passear à noite em downtown Nova Iorque ou São Francisco -, pode parecer estranho que haja cada vez mais gente a ter de escolher entre comer ou pagar impostos. Mas há. E são eles a resposta ao enigma que embrulha o mistério que contém a charada.

Trump não vencerá as eleições, estou convencido. Apesar de tudo, as incertezas que gera e um sentimento de razoabilidade próprio a um país que se quer bem, impedirá muitos americanos, mesmo por desespero, descrença no sistema ou simples irritação com os políticos tradicionais (mais tradicional do que Clinton não há), de levar a América por um caminho perigoso.

Mas é um aviso, um sério aviso, para os riscos que corre a democracia num Mundo desigual, cada vez mais desigual.

“Se eu for Presidente, vamos todos voltar a dizer ‘Feliz Natal”.