Para quem não faça da realidade política o objecto principal do seu estudo, um dos inconvenientes dos períodos de turbulência política, com o seu cortejo de indeterminações, medos e anseios, é que uma pessoa trabalha pior. Tenho sentido isso na pele. Mesmo tendo alguma facilidade, e até algum treino, em manter as coisas em gavetas separadas, quando a grossa ventania entra pela casa dentro os papéis voam e misturam-se. Ora, esta espécie de união poliafectiva das esquerdas que António Costa tem andado criar é uma tempestade a sério. E Deus sabe como eu gostaria que ela acabasse, para não ter, para conseguir trabalhar direito, de me transformar numa espécie de eremita, mesmo daqueles eremitas que, como dizia o outro, sabem os horários dos comboios.
Desgraçadamente, esse ainda vai ser mesmo, às tantas, o meu destino. Porque, somando tudo, há coisas mais sensatas do que ser obrigado a levar a sério Catarina Martins ou presumir alguma boa-fé em António Costa ou cultura democrática em Jerónimo de Sousa. Fora desse mundo asfixiante, que traz consigo a promessa de de um caos pouco virtuoso, há coisas belas sobre as quais vale a pena pensar e escrever, e que aliviam muito da corrupção do pensamento que o actual PS tem gosto em exibir, e que se manifesta, entre outras coisas, na prática sistemática da falsificação da história: foi Passos Coelho que nos trouxe a troika, foi a coligação que perdeu as eleições, foi a direita que se radicalizou, e por aí adiante. E sempre com muitas saudades do PSD de Sá Carneiro. O que, se uma pessoa se lembrar (eu lembro-me bem) do que se ouvia em 1980 por se votar na primitiva Aliança Democrática, e, depois, no General Soares Carneiro, não deixa de ter graça. “Fascista” era o mínimo que saía da boca de muitos dos póstumos e encartados admiradores de Sá Carneiro.
Mas esqueçamos esse quase forçado desejo de paz de espírito e procuremos algum sentido no que se passa. E a melhor maneira de o fazer é talvez prestar alguma atenção às palavras. Elas andam péssimas, de resto, desde há já muito tempo, policiadas como tudo e pouco prestáveis para falar direito e com alguma liberdade. Um romance conhecido de Philip Roth, A mancha humana, diz isso muito bem. Mas basta abrir um jornal, ou ver televisão, para notar até que ponto as proibições no capítulo se tornaram omnipresentes. Listá-las, e apontar o grotesco da situação, é um trabalho hercúleo, que exige uma paciência de Job. Ainda por cima, é difícil não pensar que tudo isso corresponde a um processo que tem o seu quê de fatal. Como se a nossa linguagem tendesse necessariamente para uma cada vez maior limitação da liberdade, para um grau de policiamento inaudito, e, o que não é contraditório com o anterior, para um desenfreado lirismo abstracto dos bons sentimentos. “Dar um sentido mais puro às palavras da tribo”, como pedia Mallarmé, é sem dúvida uma tarefa própria aos poetas, mas os poetas pouco podem contra a televisão.
Quem viu talvez melhor do que ninguém a evolução para o lirismo abstracto dos bons sentimentos, com um talento nunca igualado para a previsão sociológica, foi Alexis de Tocqueville. Em vários capítulos do segundo volume de Da Democracia na América, que rivalizam com o 1984 de Orwell na análise da relação da política com a linguagem, Tocqueville mostra como as línguas das sociedades democráticas manifestam “a paixão das ideias gerais”, “o uso contínuo dos termos genéricos e das palavras abstractas”, tudo inclinando para o vago. A poesia mostra isso ainda melhor do que o resto. Trata-se de pintar paixões e ideias e de exaltar liricamente os bons sentimentos, denunciando simultaneamente as trevas do mal. (Se se quiser um exemplo nacional de um discurso político e poético que corresponde por inteiro à caracterização de Tocqueville, leia-se, ou ouça-se, Manuel Alegre.)
Francis Bacon, o filósofo inglês do início do século XVII – que tinha, de resto, um génio extraordinário para a invenção vocabular -, chamava às palavras que tendem a perturbar o uso correcto do nosso entendimento “ídolos da praça pública”: usamos correntemente nomes para designar coisas que não existem e nomes confusos para designar coisas efectivamente existentes. Em ambos os casos, os nomes adquirem um poder mágico sobre o nosso entendimento e afastam-nos do contacto com a realidade, mergulhando-nos num mundo que só aparentemente faz sentido. As palavras cercam e violentam o entendimento. Tornam-se, por assim dizer, embora Bacon não utilize a palavra, por razões evidentes (ela entrou em circulação na Europa mais de um século depois da sua morte), fetiches.
Ora, se há palavra que possua o estatuto de fetiche hoje em dia é bem a palavra “esquerda”. Tirando no que respeita à sua origem histórica (serviu para designar aqueles que se sentaram, em 1789, à esquerda do sr. Clermont-Tonerre, na sala dos Pequenos-Prazeres do palácio de Versalhes), tudo nela ilustra a equivocidade, a confusão na determinação do objecto de que falava Bacon. Dir-se-á que o mesmo vale para “direita”, e, em grau variável, para o vocabulário político em geral. Verdade. Mas “direita” – esqueçamos o vocabulário político em geral – não goza, nem de perto nem de longe, do estatuto de culto fetichista de que “esquerda” goza, nem, por conseguinte, de um investimento passional equivalente.
Foi este fetichismo da palavra, o carácter difuso do seu objecto vestido de uma aparente univocidade, que permitiu a António Costa a gloriosa ideia de juntar numa coligação governamental, ou alguma coisa parecida, entidades tão diferentes entre si como o PS, o BE e o PC. O resultado disso, se as máquinas do esquisito laboratório funcionarem, será necessariamente um monstro lógico e político que ele, qual moderno Dr. Frankenstein, procurará controlar e disciplinar, apesar da situação difícil de ele próprio ter entrado com umas partes quaisquer da sua anatomia mental na constituição do monstro.
Há, no entanto, algumas diferenças entre o monstro original e o monstro de Costa. O primeiro tinha uma dimensão trágica e os seus crimes eram cometidos em desespero. Além disso, o Dr. Frankenstein foi quase imediatamente tomado por sentimentos de dor e culpa pelo que criara. O novo monstro, a existir, agirá com método e premeditação, e o nosso Dr. Frankenstein já deu provas suficientes de não ceder facilmente ao tipo de sentimentos do original. Pelo contrário. Ser de esquerda, cultivar os ídolos da praça pública e falar a linguagem de um bem abstracto contra um mal não menos abstracto, aparentemente protege disso.