Suponho que muita gente terá passado uma boa parte destes últimos dias a disciplinar emoções contraditórias. A mim, pelo menos, que andei em trânsito quase permanente entre a CNN e a Sky News, a Sky News e a Al Jazeera, a Al Jazeera e a France 24, e Deus sabe lá mais o quê, foi o que me aconteceu. Por causa, é claro, do avião civil abatido pelos separatistas de Donetsk e pela guerra entre Israel e o Hamas.

No primeiro caso, a oscilação emotiva não foi grande, nem podia ser. Provavelmente (fora da Rússia, é claro) só os mais empedernidos nostálgicos do defunto Império soviético, que vêem em Putin uma vaga encarnação das boas práticas do tempo passado, terão tido sentimentos divididos. No resto de nós a reacção emotiva é uma consequência quase imediata daquilo que a informação disponível dá a ver. E o que a informação disponível dá a ver é que, por uma razão ou outra, o míssil que abateu o avião foi disparado pelas forças separatistas ucranianas pró-russas, e que Putin, directa ou indirectamente, é responsável na matéria.

O percurso de Putin aproximou-o, de resto, pouco a pouco, deste tipo de situações. A Rússia, em geral, nunca se distinguiu, tirando um momento ou noutro (Fevereiro de 1917 vem ao espírito – mas depois veio o glacial Outubro), por qualquer contribuição significativa para a história da liberdade. Nada de relevante acompanhou a grande arte – a grande literatura e a grande música, em primeiro lugar – no plano político.

Bem pelo contrário. Rui Ramos referiu-se a Kipling no seu último artigo. Permito-me fazer a mesma coisa. Kipling dizia – dando voz a um sentimento comum: Marx, algumas décadas antes, dizia coisas semelhantes – que, enquanto orientais, os russos eram óptimos; se vistos como ocidentais, uma lástima. Desde a invasão da Crimeia que se voltaram a ouvir coisas destas, com a possível amputação da primeira parte da frase.

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Longe de mim a ideia de atribuir um carácter moral às nações, e, neste caso, à Rússia. Limito-me a dizer que a política da Rússia na Ucrânia, brutal e de mentira fácil, cosida com fio grosso, tornou possível o que se passou. A emoção suscitada pelo assassinato dos passageiros do voo MH17 da Malaysia Airlines e pelas inimagináveis condições a que se viram condenados os cadáveres só podia ser inequívoca. Uma emoção que era uma compaixão obrigatória e que, apesar de obrigatória, era livre e destituída, tanto quanto possível, de artificialidade.

A coisa é diferente na guerra entre Israel e o Hamas. Em primeiro lugar, há muita gente que se recusa a qualquer simpatia pelos civis israelitas – os felizmente poucos mortos e aqueles que são forçados, num período de 13 segundos, a procurarem abrigo dos rockets do Hamas –, bem como, por maioria de razão, com os militares israelitas que, para os protegerem, com imensa coragem arriscam as suas vidas e morrem em grande número. São aqueles que desejam que todos os israelitas morram, pelo menos os judeus, ou que então agradeceriam que, por desistência ou passe de mágica, Israel deixasse de existir. São exactamente os mesmos que nos exigem que olhemos fixamente para imagens onde crianças são transportadas para hospitais, para, dizem-nos, aí ir morrerem das feridas infligidas pelo exército de Israel. Aqui, a compaixão é equívoca porque vem investida de um conteúdo político que a afasta da universalidade sugerida pelos mortos do avião malaio.

O pior é que não são só esses. Eu também saí dos meus périplos televisivos com sentimentos equívocos. Não – aviso desde já, para não ser mal interpretado; é preciso explicar tudo hoje em dia – que deseje o mínimo mal possível aos civis da Faixa de Gaza. Muito pelo contrário. Como a maioria das pessoas – incluindo os israelitas, diga-se de passagem – gostaria de ver os palestinianos viverem em condições tão boas como as dos israelitas, com a liberdade dos israelitas, com a possibilidade de uma vida autónoma como a de qualquer cidadão de Israel. O problema não vem daí, portanto.

O problema vem de saber o que qualquer pessoa que se procura informar tem a obrigação de saber.
De saber, por exemplo, que Mousa Abou Marzouk, um representante de Khaled Mashal, o chefe do Hamas que douradamente vive no Qatar, terá dito a Mahmoud Abbas, que o havia avisado das consequências terríveis para a população da Faixa de Gaza de uma guerra com Israel: “O que são duzentos mortos, se se acabar com o cerco?”.

De saber que o Hamas esconde propositadamente rockets e centros de decisão militar em hospitais, mesquitas e outros lugares onde os civis se refugiam.

De saber que o Hamas encoraja os civis a permanecerem em lugares que Israel avisou previamente, e com a devida antecedência, irem ser bombardeados.

De saber (até por o ter visto a falar na televisão) que o nosso bem conhecido médico norueguês Mads Gilbert – que se recusa a tratar de certas vítimas de guerra que possuam uma certa filiação étnica ou política (imaginem quais), e que aplaudiu o 11 de Setembro: a medicina, diz ele, tem pouco de não-político – oferece a sua visão autorizada dos acontecimentos a partir de um hospital de Gaza, e os jornalistas acreditam.

De saber que o Ministério do Interior do Hamas distribuiu aos activistas do Facebook várias instruções que depois inevitavelmente se prolongam em jornais e televisões. Coisas do género: “Qualquer morto ou martirizado deve ser chamado um civil de Gaza ou da Palestina, antes de se falar do seu estatuto na jihad ou na sua patente militar. Não se esqueçam de acrescentar sempre «civil inocente» ou «cidadão inocente» na vossa descrição daqueles que morreram em ataques de Israel a Gaza”.

De saber isto e muitas outras coisas do mesmo tipo, que, repito, qualquer pessoa que se queira informar sobre o que se passa em Gaza tem a obrigação (e uma extrema facilidade) de saber.

A minha compaixão (e a de muitíssima outra gente) com os civis mortos em Gaza é equívoca, mas não pelas razões pelas quais a dos inimigos de Israel (utilizo a expressão com propriedade) o é. Não é equívoca por selectividade, pretendendo ser universal sem o ser, por obedecer à lógica do Dr. Mads Gilbert. É equívoca porque saber o que qualquer pessoa tem a obrigação de saber me coloca na posição indesejável de ter que ter na mente sempre duas coisas. Primeiro, que as vítimas são, em boa parte, reféns do Hamas, e morrem por isso mesmo. Segundo, que – quase custa dizê-lo, mas é preciso dizê-lo – o que os media nos apresentam como vítimas civis em vários casos serão tudo menos isso.

O mal-estar que isso provoca, ao ver as grandes cadeias de televisão, pouco tem a ver com o sentimento de estar a ser enganado. Isso é coisa de pouca monta neste caso. O mal-estar vem de mais fundo. Vem de, a par da compaixão com o sofrimento humano, ouvir a música terrível da lógica do mal, tão bem expressa pelo representante de Khaled Mashal: “O que são duzentos mortos, se se acabar com o cerco?”. Duzentos, quatrocentos, seiscentos, mil, dois mil palestinianos, que importa? Provocar a resposta de Israel a ataques sistemáticos contra os seus cidadãos é sempre pagante, dentro deste sistema de pensamento, se essas vidas perdidas suscitarem a compaixão exclusiva que permita a condenação, e eventualmente o fim, de Israel, tão ardentemente desejados, em patente anti-semitismo, em várias ruas de Paris e por esse mundo fora. No fundo, o mal-estar que tudo isto provoca, e que se acrescenta à dor provocada pelo sofrimento das pessoas, é o de se perceber tão bem a falta de compaixão do Hamas com o sofrimento dos palestinianos.