Detido desde a noite de 21 de novembro de 2014, quando chegava de Paris, José Sócrates tem recorrido a cartas para se defender das acusações que estão na origem da Operação Marquês. Antes da entrevista por escrito à SIC desta terça-feira, 3 de fevereiro, Público, TSF, RTP e Diário de Notícias foram os primeiros veículos de comunicação. Depois chegou a entrevista à TVI.

Tudo começou a 26 de novembro, cinco dias após a detenção no aeroporto de Lisboa, com uma carta ao Público e TSF, ditada ao seu advogado, João Araújo. A meros três dias do XX Congresso do Partido Socialista, a preocupação do ex-governante era uma e só uma: separar as águas. Sócrates não queria ver colagens entre a caminhada do partido e a sua detenção. “Este é um caso da Justiça e é com a Justiça Democrática que será resolvido. Este processo é comigo e só comigo. Qualquer envolvimento do Partido Socialista só me prejudicaria, prejudicaria o partido e prejudicaria a democracia”, explicou.

No primeiro dia de dezembro chegou outra carta, desta vez à redação da RTP, na qual disse com clareza que, apesar de ser “difícil falar”, não faria o “favor de ficar calado”. Desta vez esqueceu as críticas e os conselhos para os camaradas de partido e partiu para a defesa pessoal. O ex-governante explicou então onde viveu em Paris e a decisão da sua mãe de vender dois apartamentos.

“No primeiro ano [em Paris] vivi num apartamento arrendado. Depois, de setembro de 2012 a julho de 2013, vivi num apartamento que me foi emprestado pelo meu amigo eng. Santos Silva, que o comprou para arrendar ou vender, que é a situação dele. Saí quando começaram as obras”, escreveu. “No princípio deste ano [2014], depois de uns meses a viver com a família em hotéis, arrendei outro apartamento que mantenho atualmente como minha residência em Paris.”

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Somente três dias depois, Sócrates escreveu mais uma carta. O destinatário foi o Diário de Notícias, a 4 de dezembro. Desta feita voltou a afiar o lápis e disparou em várias direções: “o ‘sistema’ vive da cobardia dos políticos, da cumplicidade de alguns jornalistas; do cinismo das faculdades e dos professores de Direito e do desprezo que as pessoas decentes têm por tudo isto.”

“Prende-se para melhor se investigar. Prende-se para humilhar, para vergar. Prende-se para extorquir, sabe-se lá que informação. Prende-se para limitar a defesa: sim, porque esta pode ‘perturbar o inquérito’. Mas prende-se, principalmente, para despersonalizar. Não, já não és um cidadão face às instituições; és um ‘recluso’ que enfrenta as ‘autoridades’: a tua palavra já não vale o mesmo que a nossa. Mais que tudo — prende-se para calar”. É assim que José Sócrates começa a sua defesa.

Para o ex-primeiro-ministro, a verdadeira razão por trás da prisão preventiva prendia-se com o limitar a sua defesa, com “despersonalizar”, mas principalmente “para calar”. Sócrates fechou esta carta com uma pergunta desafiadora: “Quem nos guarda dos guardas?”

A 2 de janeiro, numa carta à TVI, surgiu a defesa mais estruturada, detalhada e longa. A razão? “Dou esta entrevista em legítima defesa”, assim começou. “Em legítima defesa contra a sistemática e criminosa violação do segredo de justiça; e contra a divulgação de ‘informações’ manipuladas, falsas e difamatórias. Em legítima defesa contra a transferência do julgamento para uma praça pública onde só pode fazer-se ouvir uma voz e onde só pode circular livremente uma versão deturpada das coisas. Em legítima defesa contra uma agressão feita cobardemente, a coberto do anonimato, como é típico dos aparelhos burocráticos onde reina o ‘governo de ninguém’ – ‘ninguém’ o exerce, ‘ninguém’ presta contas.”

As perguntas da TVI chegaram-lhe às mãos através de João Araújo, o advogado, numa altura em que já fora proibido de dar uma entrevista ao Expresso. Sócrates começou por ser questionado sobre se foi confrontado com provas, na altura em que foi interrogado pelo juiz Carlos Alexandre. Pediram-lhe também para comentar as detenções de Carlos Santos Silva, o amigo e ex-administrador do Grupo Lena, e João Perna, o seu motorista. As questões abarcaram ainda outros temas como as habitações onde viveu na capital francesa, assim como alegados negócios no futebol com Rui Pedro Soares.

Deixamos alguns destaques em baixo:

“Não, não fui – nem confrontado com factos quanto mais com provas. E isto é válido para todos os crimes que me imputam, que considero gravíssimos para quem exerceu funções públicas.”

“(…) Apesar da minha insistência, nunca, em nenhum momento, nem a acusação nem o juiz foram capazes de me dizer quando e como é que fui corrompido, onde ou sequer em que país do mundo essa corrupção aconteceu, nem por quem, a troco de quê, qual a vantagem que obtive ou qual a que concedi, lícita ou ilícita. Nada, rigorosamente nada!”

“O que afirmo, portanto, é que fui detido e preso (preventivamente) sem me terem sido referidos nem factos, nem provas de que tenha cometido quaisquer crimes, a começar pelo crime de corrupção que estaria na origem de tudo. A partir daí, este processo é todo ele uma caixinha de presunções, em que as presunções assentam umas nas outras numa construção elaborada mas absolutamente delirante.”

“Quem quis esta prisão infundada sabe bem que a prisão funciona como prova aos olhos da opinião pública – ‘se está preso alguma coisa deve ter feito’, é o que as pessoas tenderão a pensar. (…)  Afinal, se ele está preso, que mais é que ainda é preciso provar? A resposta, porém, por estranho que pareça, é esta: tudo. Falta provar rigorosamente tudo.”

“[As detenções de Carlos Santos Silva e João Perna] são ambas, cada uma à sua maneira, injustas e injustificadas. No fundo, essas prisões foram ordenadas, como a minha, sem factos que as possam fundamentar. E isso é terrível!”

“Por vezes chega a ser difícil separar a investigação e as notícias que têm vindo a ser publicadas da pura bisbilhotice (ou devassa).”

“Confirmo, sem qualquer problema, que face a algumas dificuldades de liquidez que atravessei em certos momentos, sobretudo desde que tive parte da minha família em Paris e eu próprio vivi entre Lisboa e aquela cidade, recorri várias vezes a empréstimos que o meu amigo Carlos Santos Silva me concedeu para pagar despesas diversas. Mas, sinceramente, não me parece que pedir dinheiro emprestado a um amigo seja crime, nem aqui nem em nenhuma parte do mundo! Sempre foi, como continua a ser, minha intenção pagar-lhe o que for devido, apesar da informalidade da nossa relação e da grande amizade pessoal que nos une desde há muitos anos. É um assunto que resolverei com ele e que só a nós diz respeito.”

“Nunca o meu motorista foi a Paris; nunca me levou nenhuma mala de dinheiro; e nunca o meu carro foi além de Espanha (onde fui passar curtos períodos de férias e pouco mais).”

“Bom, este ponto, se não fosse trágico, era de rir à gargalhada. A resposta é simples: não tenho nada que ver com os negócios entre o Eng. Carlos Santos Silva e o Dr. Rui Pedro Soares. Ponto. Não tive deles conhecimento, nem tinha que ter.”

“Não, não sabia [que estava a ser investigado], não fazia a mínima ideia (até às buscas em casa do meu filho). Tento não ligar muito aos rumores e dou algum desconto às notícias de certos jornais.”

“Este processo é, na sua essência, político. No sentido em que tem que ver com o poder, os seus limites e o seu exercício; o poder de deter para interrogar e o poder de prender preventivamente pessoas inocentes. Já para não falar nas consequências que este processo inevitavelmente terá na disputa política. Veremos quais. Como já disse, isto ainda agora começou.”