“A peregrinação a Fátima, pelo 13 de Maio, é uma tradição do concelho de Mortágua. A saída dá-se sempre no final de abril ou no princípio de maio. É perfeitamente normal. E lá preparámos a viagem, com todos os meios, todos os cuidados – o trilho, a sinalização –, tudo como deve ser. Nada fazia crer esta tragédia tão grande.” José Francisco Tomás é o pároco de Mortágua há 12 anos. Ainda é com incredulidade que fala da madrugada de sábado. Naquele dia acordou cedo, como sempre faz. Bateram-lhe à porta e foi logo aí que soube da notícia. Apressou-se a ligar a televisão que confirmava a tragédia ocorrida horas antes no IC2.

Era próximo de todas as vítimas. Tratava-as pelo nome, via-as diariamente. O que não é coisa de se estranhar por Mortágua, vila pequena, em dimensão e em número de habitantes, onde o catolicismo e a fé estão profundamente enraizadas. Ao abalo inicial, forte, seguiu-se uma reação. “O ambiente foi naturalmente de pesar. Não há muito o que dizer, senão rezar, pelos que não estão, pelos que estão hospitalizados, por todos, ser próximo das famílias na dor. Foi isso que fiz. Orei”, conta ao Observador o padre José Francisco Tomás.

Na manhã de sábado, José Francisco Tomás e António Correia Alves, também ele padre em Mortágua, acolheram os familiares das vítimas na igreja. Confortaram-nos como puderam. Pouco tempo depois chegou o restante grupo de peregrinos que tinha saído de Mortágua rumo à Cova da Iria, em Fátima.

Eram perto de oitenta peregrinos. Quatro morreram no local do atropelamento. A quinta vítima mortal veio a falecer no caminho para o hospital. Dos quatro peregrinos que ficaram internados nos Hospitais da Universidade de Coimbra, dois já tiveram alta. Segundo o gabinete de comunicação do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, os dois feridos que permanecem internados nos cuidados intensivos, estão “ventilados e com prognóstico reservado”.

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Antes de saber quando iriam regressar a Mortágua os corpos das vítimas mortais, o padre José Francisco sugeriu aos familiares um velório coletivo, “para que todos se unam na dor e para que se homenageiem as vidas perdidas”. Quatro dos corpos chegaram esta manhã a Mortágua. O velório decorreu no quartel dos bombeiros voluntários e os funerais estavam marcados para as 15h00. Segundo o Jornal de Notícias, o corpo de Aida Silva, está em Gândara por opção dos familiares.

A resposta está na fé

Doutorado em Teologia Bíblica, José Tolentino Mendonça explica que a experiência da peregrinação é transversal a diferentes tradições religiosas e espirituais. “É parte integrante do património religioso da humanidade. É uma experiência muito profunda, verdadeiramente transformadora, uma oportunidade de renovação, de encontro, de paragem e de descoberta.”

Mas pode um acidente, nestas circunstâncias, abalar a fé? O padre Tolentino Mendonça responde: “Penso que um acidente como este, antes de ser uma questão de fé, é uma questão de ordem pública. Mais do que uma pergunta dirigida aos céus, é uma grande interrogação dirigida aos homens. Sim, é uma experiência que nos deixa sem palavras. A morte é uma experiência tão abrupta, tão incalculável, que não há palavras, só lágrimas. E importa chorar pelos que choram. Mas, se as palavras da fé trazem alguma consolação, é a certeza de que os peregrinos não interromperam a sua peregrinação no local do acidente; a sua peregrinação continuará até ao coração de Deus.”

O padre Anselmo Borges, teólogo e professor de Filosofia na Universidade de Coimbra, sabe que esta é uma interrogação que os crentes fazem sempre que são confrontados com a dor e a perda: “Como é que Deus, sendo infinitamente poderoso e infinitamente bom, permite o mal no mundo e permite tragédias como esta?” A resposta está precisamente na fé, afirma: “A fé é um combate, e, por isso, nunca fica abalada. Ela reconstrói-se e reconfigura-se. Torna-se autêntica.”

Na dor, ser católico, ser crente, vinca o padre Anselmo Borges, é uma mais-valia: “Por um lado, o problema do mal, do sofrimento, da dor e da tragédia, leva a que muitos sejam agnósticos ou ateus. Mas por outro lado, os agnósticos e os ateus, na tragédia, ficam com o sofrimento e sem esperança, ao passo que os crentes, no meio do silêncio de Deus, seguem em frente, e têm em Cristo um exemplo de vida, de vida eterna e de esperança. A palavra a dar aos que sofrem, nesta altura, é uma palavra que está no Evangelho: ‘Senhor, nós acreditamos! Aumenta a nossa fé!’ A fé é uma consolação.”

«É uma tragédia que se abateu sobre um grupo de amigos.»

A autarquia de Mortágua decretou, logo no sábado, três dias de luto municipal. No local do acidente, em Cernache, o presidente da Câmara Municipal, José Júlio Norte, disse à Lusa que este fora “o momento mais negro” do seu percurso de quase 20 anos como autarca de Mortágua. Mas não era de política que ali se tratava: “É uma tragédia que se abateu sobre um grupo de amigos.”

Esta segunda-feira, contactado pelo Observador, José Júlio Norte optou por não fazer mais depoimentos, mas fonte da Câmara Municipal garantiu que os familiares de todas as vítimas e os restantes peregrinos que presenciaram de perto o acidente no IC2, estão já a ser devidamente acompanhados por psicólogos e técnicos de ação social disponibilizados pela autarquia. No local do acidente, psicólogos do INEM e psicólogos disponibilizados pela Câmara Municipal de Condeixa-a-Nova prestaram o primeiro apoio.

Têm sido dias dolorosamente longos em Mortágua. Há quem se refugie na igreja e reze; há quem se feche em casa, em luto, à espera de notícias que tardam em chegar; há quem, no café e na rua se questione, perplexo e revoltado com tudo o que aconteceu, procurando uma explicação para tamanha tragédia: “Como é que um condutor de 24 anos foi colher violentamente, e em contra mão, os peregrinos da terra?”

Em Mortágua, poucos são os que, hoje, aceitam falar à imprensa. O Observador chegou à fala com um colega de trabalho de Graça Paula, 46 anos, uma das vítimas mortais do acidente, mas que, “por respeito às famílias” preferiu manter o anonimato. “A população está chocada, o clima é muito pesado, anda tudo incrédulo! Como é que isto nos foi acontecer, numa terra tão pequena como Mortágua, onde todos são como família?”, questiona. E pouco mais foi capaz de acrescentar.

As restantes vítimas, além de Graça Paula, são Flávio Mendes e Diogo Ferreira, de 17 e 18 anos, estudantes na Escola Secundária de Mortágua e que seguiam no grupo de peregrinos, dando-lhes auxílio, como escuteiros; também Helena das Neves, ourives de 70 anos, e Aida Silva, de 52, que era funcionária de uma estufa agrícola em Mortágua, perderam a vida no acidente do IC2.

Sair do IC2 e caminhar em segurança

Em 2014, o Santuário de Fátima, por ocasião do 13 de Maio, acolheu perto de 210 mil peregrinos. Destes, cerca de 35 mil chegaram a pé à Cova da Iria. Um número que se tem mantido constante nos últimos cinco anos, à exceção de 2010, ano da visita do Papa Bento XVI, que levou ao Santuário de Fátima mais de meio milhão de fiéis.

Desde 1934 que o “Movimento da Mensagem de Fátima” (MMF) está presente nesta época de peregrinação. Em parceria com a Ordem de Malta, com a Cruz Vermelha, os escuteiros, os bombeiros, as dioceses e as paróquias, trabalha para que os peregrinos cheguem são e salvos ao Santuário. Este ano o MMF tem no terreno cerca de 1500 voluntários que acompanham os peregrinos na estrada. A prestar apoio médico-sanitário e alimentos há sete equipas itinerantes e 72 postos de acolhimento fixos.

Manuel Fragoso é o presidente do MMF há nove anos e afirma que o acidente de Cernache “podia ter sido evitado”. Diz que não foram os peregrinos, nem a GNR, nem as Estradas de Portugal que falharam. “O problema é a ética – ou a falta dela! – dos condutores. O fundamental é haver consciência por parte de quem conduz.”

Contactada pelo Observador, a Estradas de Portugal (EP) lamenta o acidente e diz que esta é uma situação “pouco comum”. Pedro Ramos, porta voz da EP, refere que o número de acidentes mortais nos últimos anos “diminuiu”. No entanto, alerta que é necessário retirar os peregrinos das estradas com maior movimento para baixar ainda mais o risco de atropelamentos. “Existe a tentação de seguir por um percurso mais rápido e mais direto, mas existem alternativas mais seguras”, salienta Pedro Ramos, fazendo referência ao mapa que a EP vem distribuindo aos peregrinos, e que contém percursos alternativos ao IC2.

Desde Gaia até Fátima, é pelo IC2 que caminham a maioria dos peregrinos. Por ser uma estrada muito movimentada e perigosa, o MMF apresentou ao Santuário de Fátima um itinerário alternativo “mais seguro e confortável” para quem vai a pé para a Cova da Iria. O MMF pretende certificar este novo percurso como “Itinerário Cultural Europeu” – uma classificação atribuída pelo Instituto Europeu dos Itinerários Culturais. A ideia é que este percurso seja implementado até 2017, com o apoio de 14 municípios e do próprio Santuário. Entre Gaia e Fátima, os peregrinos poderão caminhar fora do IC2 durante quase todo o percurso. A distância é um pouco maior – mais 16 quilómetros –, mas, garante Manuel Fragoso, diminuirá o risco de atropelamento.

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