Quando é que a nossa vida passou? Em que ponto do caminho percebemos que a abundância com que sonhámos se resume a dias e dias engolidos uns atrás dos outros, a envelhecer numa sala de estar entre um sofá e uma porta? Em que momento descalçamos os sapatos e nos tornámos covardes, impotentes? Em que momento virámos as costas ao mundo e aceitámos pacificamente que há uma solidão inexorável que nos empareda e daqui ninguém entra? As perguntas, de uma crueza implacável, apontam-se a cada um de nós pelo poeta Vasco Gato que se estreia esta quinta-feira como dramaturgo, no Teatro da Comuna, com um monólogo a dois feito de ressonâncias beckttianas: Daqui Ninguém Entra.

Daqui Nínguem Entra é encenado pela actriz Luciana Ribeiro. Foto. Vitorino Coragem

Daqui Ninguém Entra é encenado pela atriz Luciana Ribeiro. Fotografia: Vitorino Coragem

Uma mulher, um homem, um sofá, uma porta. Podem ser amantes, amigos, irmãos. Podem ser uma só pessoa. Podem ser ninguém. Apenas vozes na nossa cabeça, fragmentos de ideias, memórias, medos, lugares onde não entramos. Nesta sala não há paredes mas ninguém se atreve a entrar sem bater à porta. Temos todos boas maneiras. Somos ciosos do nosso espaço, da nossa individualidade. Ninguém entra, ninguém nos toca. Mas aí reside também a nossa grande raiva, como explica a encenadora e atriz Luciana Ribeiro: “quanto mais apertadas as fronteiras em que nos fechamos maior o nosso desejo de que alguém as transponha. Quis trabalhar esta peça ligando sempre a ideia de solidão à ideia de fronteira. A nossa solidão interior expressa-se numa série de fronteiras exteriores que o cenário, as luzes e a coreografia dos corpos procuram refletir.”

O futuro? Como se o futuro fosse a grande salvação. Como se ter um passado não fosse a condenação implacável apenas confirmada por mais um dia e outro desse mesmo crime: a repetição. Não vale a pena, digo eu. Enquanto perdurar este entra e sai de solidões, de corpos embalsamados no líquido da sua esperança. Esperança de quê?”

Os corpos de Inês Veiga de Macedo e João Ascenso movem-se numa geometria de dureza e desafetação. Falam e as palavras em torrente há muito que deixaram de comunicar o que quer que seja. As palavras são agora a sua defesa contra tudo e contra todos. Ao longo de 40 minutos, um homem e uma mulher digladiam-se numa violência crescente. O cenário minimalista não nos deixa distrair das palavras que se nos apresentam como espelho. Afinal que fizemos nós, a geração que herdou o 25 de Abril, depois a CEE, a revolução sexual? Será que o não termos obstáculos à liberdade fez de nós perdulários que preferem deitar-se no sofá a ver reality shows na televisão?

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A vaidade com que exibimos a nossa construção, a nossa carreira de nós mesmos. Mas lá fora, ali, é só pedintes. Uns de mão estendida, outros de rabo alçado. Todos a suplicar uma migalha da admiração alheia, e nunca chega, e no peito a caverna vai-se alargando e alargando, e às tantas já nem se sabe porque é que se pede. Pede-se e pronto. É essa a nossa riqueza. Escavados, mas cheios de brio. Estofados, mas sem que seja a nossa carne. O logro corrói-nos mas seguimos em frente. «Claro que sim, já lá estive, magnifico, de uma sensibilidade extrema, o que eu me ri, o que eu me ri…» O caralho. Nem uma pústula de sangue verdadeiro, apenas uma derme inexpugnável, uma coesão com tudo o que convém à manutenção desta morte metropolitana. E entram e saem e acham que estou aqui para lhes fazer sala. Nem se dão conta de que isto aqui é o meu horror, a minha repugnância. Não percebem como me pesam. Como me peso. Não percebem que estamos condenados a não ter nada para dizer.

“Esta é uma história que não tem personagens. Tem interioridades. A relação entre as vozes que falam, uma mulher e um homem sem nome não é importante até porque o que me interessa explorar é a impossibilidade crescente de comunicação entre as pessoas“, explica ao Observador o poeta Vasco Gato. “Por outro lado, queria abordar a questão da passagem do tempo”, diz ainda. “Chegados a meio do caminho como olhamos para o passado e o futuro. O que faremos com o tempo que nos resta e com a margem de liberdade de que dispomos?”.

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Daqui Ninguém Entra foi escrita pelo poeta há cerca dois anos e pensada para a atriz Inês Veiga de Macedo. Mas pelo meio aconteceu-lhes um filho para o qual o poeta escreveu o admirável Fera Oculta (Douda Correria). A peça fez-se agora com recurso a crowdfunding e ao acolhimento de João Mota na sala Novas Tendências no Teatro da Comuna, em Lisboa onde fica entre hoje e 13 de novembro. De quinta a sábado às 21h30, domingo às 18h. O texto acaba também de sair numa plaquete pela editora Companhia das Ilhas.