O mundo tem estado boquiaberto. Então que venha de lá alguém que saberá melhor do que nós o discurso apropriado. E Andrew Bird tem-no na ponta da língua: Are You Serious, título do disco que apresentou na noite de quarta-feira no CCB (concerto integrado no Misty Fest), é provavelmente a frase que mais se impõe. Donald Trump está na Casa Branca como Andrew Bird esteve no Grande Auditório. E se é para escolher a nossa realidade preferimos a segunda. E foi a melhor das escolhas.

Só que estamos perante Andrew Bird, ou seja, dedo na ferida, unha afiada, que o músico natural do estado do Illinois não é dos que gostam de ficar com coisas por dizer. Por muito que o desejo seja fugir, não pensar ao som de Andrew Bird é impossível. E de farsas já estamos cheios. Are You Serious, repetimos para nós mesmos. Isto apenas até à hora do nosso pássaro preferido subir a palco. Aí acabam-se as interpelações derrotistas. “An Evening with Andrew Bird” é claramente vitória, sobretudo quando o temos só a ele. Qual banda, um foco de luz e um circo de instrumentos. Perfeito.

Cedo se percebe que Bird vem tímido ou, pelo menos, quer aquecer antes de se atirar aos comentários políticos. Esta vertente a solo expõe Bird como nunca e, como já se sabia, além das canções, é vê-lo a criar as estruturas sonoras que as suportam que nos encanta. A improvisação sempre foi assunto central no cancioneiro deste senhor bastante fora de formato. Fazer indie rock ou folk quando o instrumento maior é o violino não é para todos. Qual conservatório, abaixo os cânones, que a partitura aqui é substituída pelos pedais e pelos loops.

“Olá a todos…foi um mau dia”, diz hesitante, entre a nostalgia e a desilusão. E prossegue:

“Os meus sentimentos foram-se desenvolvendo ao longo do dia, estou envergonhando, a encontrar uma forma de libertar a raiva. Mas enfim… de Lisboa vou para a Cidade do México portanto…”.

A risada é geral e Bird, nesse aspeto, parece um comum mortal — afinal, que mais nos sobra que não seja rir? Bem mais, e essa é que é a parte irónica. Resta-nos uma noite com Andrew Bird, onde não há muro que nos separe. E isso é impagável.

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Na maior ressaca dos últimos tempos – sim, este músico é o guronsan mais eficaz que já tomámos – há que manter a humildade, menos na hora em que Andrew Bird afirma antes de cantar a faixa-título: “Are You Serious?…Isto era uma piada, OK?”. Ou é bruxo ou nós somos demasiado previsíveis, se alguém souber a resposta certa que guarde para si, preferimos não saber. O que sabemos é que esta modernidade e esta reinvenção são únicas. Basta apreciar a forma como o músico deita o violino e o toca que nem estrela rock a brincar com a guitarra, por momentos o violino quase parece um cavaquinho, ainda que nos guie por uns blues misteriosos, rastejantes, com toda a sujidade que se deseja vinda do género.

Todo o concerto é uma dança no trapézio, passo a passo, com texturas instantâneas, que vemos serem geradas à nossa frente. Bird voa livre e isso significa que faz o que lhe apetece. Muda subitamente de loop, nota ou instrumento, uma arte apenas ao alcance de quem ousa desafiar as alturas sem rede junto ao chão.

Eis que chega a hora de “Sick Of Elephants”, do disco “Armchair Apocrypha” (2007):

“A próxima canção foi feita quando o George W. Bush foi reeleito. Não sei se faz sentido atualmente, mas questiona como é que foi possível milhões de americanos reelegerem o Bush. E agora, claro… isto”.

E ataca com o famoso assobio, que no caso deste artista é um instrumento como todos os outros. E por estes dias, se é para assobiar, que seja com sentido e não para o lado.

Segue-se “Left Handed Kisses”, tema também tirado de Are You Serious, com colaboração de Fiona Apple e que é responsável pela “parte mais complexa do espectáculo”, confessa-nos o próprio antes de assumir um dueto por contra própria. Este Bird além de cantar bem ainda domina a manha da multiplicação. Assim sim. E quando achávamos já ter visto de tudo esta noite eis que o homem faz outra e toca “Estranha Forma de Vida”, de Amália Rodrigues, que aprendeu aquando da sua passagem pelo Aqueduto das Águas Livres.

Nas cadeiras da frente, dois jovens norte-americanos que, arriscamos, vieram diretos da Web Summit, debatem como se pronuncia esse que é um dos temas mais conhecido de Amália. Isto após Bird ter tentado a sua sorte — e que não se viria a revelar assim tão má. Daqui por uns tempos, com tantas amizades e sentimentos, já fala português, falta-lhe pouco. E é claro que “alguns amigos já falaram na hipótese de arranjar uma casa aqui em Lisboa”, avisa.

“Está tudo a dizer: o Trump foi eleito, vamos embora daqui. Mas, sabem, fugir é pouco nobre. Há que ficar e resistir, lutar contra o que se está a passar”.

Respeitamos a decisão. Mas esteja à vontade senhor Bird, se mudar de ideias será sempre bem-recebido. O nosso voto é certo.