Aparecia sem alarido. Não fosse a multidão perder o fôlego e o mais provável era nem darmos por ele. Devagar e tranquilo, duas palavras chave para descrever o momento. Sem termos certezas de nada, estaríamos sempre prontos para pôr as mãos no fogo por uma jura: este tipo não quer grande reconhecimento, a fama não lhe interessa. Quer dar-nos conversa, baralhar-nos as ideias, dizer-nos que estávamos todos bem melhor na cama, uns com os outros a trocar segredos. Mas nós ali, sem pensarmos duas vezes no assunto. As coisas da fé são assim. Até o próprio Leonard Cohen disse em tempos: a religião é o melhor hobby. Uma diferença — quando o assunto era um concerto do canadiano, era o resto da vida que se transformava em passatempo, limpinho limpinho.

Antes de qualquer concerto, estavam prontos os incrédulos, “mas para quê vê-lo outra vez”. Isso era sempre o mais fácil de explicar, até porque todos os argumentos contra serviam de argumentos a favor. Nunca era a mesma coisa, nem que o alinhamento fosse o mesmo dos nossos últimos dois encontros; e não precisávamos de fogo de artifício saído do palco. Cohen chegava, fato no corte certo, chapéu como mais ninguém consegue usar, deitava as entranhas em cima do microfone e nós apanhávamos com os quilómetros de vida do poeta. Da vida dele ou das que ele imaginou, para o lado de cá parecia tudo saído do mesmo campeonato. Tocava guitarra aqui e ali, balançava-se com cuidado mas com pinta e perdíamos todos a cabeça porque aquilo sim, minha gente, aquilo era estilo.

Mais de duas horas nisto, Cohen era uma espécie de Boss, mas em vez de festejar o mundo inteiro num estádio, era o anfitrião de celebrações íntimas, a 1 ou a 2, mais do que isso era multidão. E ainda assim, vê-lo ao vivo num pavilhão ou num passeio marítimo era perfeito. Todos caladinhos, à espera que um milagre acontecesse. Nada, a vida de cada um continuava aparentemente na mesma, tudo a voltar para casa, para o costume. Tirando aquele pequeno detalhe: estive com o Leonard Cohen. E de alguma maneira isso mudava tudo. Porque mais ninguém se chegava à frente de um palco para cantar as ironias e as tragédias do amor e da morte (devem ser estas as duas maiores) com a mesma classe que o homem que as inventou, pelo menos como muitos as conhecemos.

Quem sabia as canções de cor tentava imitar aquela rouquidão impossível. Quem não as conhecia perguntava-se “porquê?” e percebia que a partir dali nada seria igual. Para todos, o fim do concerto parecia a despedida de uma maratona rock’n’roll com ar de coisa festivaleira. Um cansaço danado, respirar era coisa tramada, como se as horas anteriores tivessem sido feitas a correr e numa subida. Um enxerto de porrada daqueles bem dados, que não causa dor mas faz disciplina: serás sempre assim, devoto de são Cohen, por muito que queiras não darás a volta a isto.

Cohen tinha um enorme exército de fiéis seguidores, capazes de tudo. Até porque todos queriam um pedaço do milagre que ele carregava com tanta graça. Queríamos todos ser sedutores e poetas, queríamos todos ter bom gosto e bom grão na voz. Queríamos todos ser mais espertos que a morte, trocar-lhe as voltas em digressões sucessivas, vender bilhetes para que todos pudessem ver o herói uma última vez. Tínhamos sempre na ideia que haveria mais uma. Safado.

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