“Verão Danado” fala da juventude portuguesa de uma forma rara na ficção nacional. Fala-se em “portuguesa” e “Portugal” porque o filme de Pedro Cabeleira (Entroncamento, 1992), que se estreia esta sexta feira no Festival de Locarno, na secção competitiva Cineasti Del Presente (dedicada a primeiras e segundas obras de jovens realizadores), é um filme chave desta nova geração de realizadores portugueses, com o à-vontade suficiente para se desprender das regras da escola e daquilo que lhes foi dito para fazerem. Talvez seja uma atitude punk tardia, mas é uma que está a abrir horizontes e linguagens no cinema português.

Demorou cerca de três anos para estar pronto. Quando se pergunta porquê, Pedro Cabeleira diz que “teve a ver um bocado com as condições, creio que o filme não tinha amadurecido se o tivesse fechado logo depois de ter filmado. As rodagens duraram sete meses, ainda foram muitos dias, foram 43, mas estiveram sempre um bocado sujeitas à disponibilidade das pessoas. Na pós-produção tive de jogar com a disponibilidade do montador, na altura era o Rúben [Gonçalves]. Depois adquiri um computador, para conseguir montar o filme. A parte do som foi a que durou mais tempo. Para fechar o som é preciso mesmo ter dinheiro, ter acesso a um estúdio de mistura.”

[o trailer de “Verão Danado”:]

O tempo de cozedura talvez tenha sido importante para a forma como as coordenadas temporais são trabalhadas em “Verão Danado”. São cerca de dez momentos que estão espalhados ao longo de um verão, mas a dinâmica entre as cenas cria uma acção concentrada numa espécie de fim de semana prolongado:

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“Está condensado em três ou quatro dias. A ideia nunca foi dar umas coordenadas temporais. A mim não me faz confusão nenhuma que pareça um verão. Inicialmente foi pensando para ser um verão inteiro. São vários momentos de um verão, podem estar condensados num fim de semana como espalhados pelo tempo mesmo.”

Contudo, a ideia de verão é importante para o filme de Cabeleira, dar ao espectador uma referência temporal torna a narrativa mais contínua e não coloca qualquer entrave, ou fim, no seu final (que termina num after, sugerindo que um novo dia já começou). A vida continua – ou não pára — depois do verão: “São coisas mundanas, nunca há um grande drama que ligue o filme inteiro.”

Coisas mundanas? As duas horas de “Verão Danado” mostram conversas ocasionais de amigos, relações que acabam, saídas à noite, festas, conversas de noite, engates, afters. Coisas normais filmadas na sua absoluta normalidade. Não há qualquer julgamento no olhar de Cabeleira, também não há qualquer imposição ou tentativa de transformar o mundano em superlativo:

“Antes de ter a ideia, queria fazer um filme. A ideia surgiu porque queria fazer um filme, estava à procura do que poderia fazer de cinema, o que era uma coisa com impacto visto em tela, com o que tinha à minha disposição. Sempre saí muito à noite e é um ambiente que estou relativamente familiarizado. E uma das grandes preocupações que eu tinha é que isso aí fosse o mais autêntico possível.”

E é o mais autêntico possível. E também é o retrato mais autêntico possível de uma juventude. Pela forma como se diverte e como isso se manifesta na sua vivência. Pessoas com medo de se divertirem irão acusar “Verão Danado” de muito hedonismo, ou pior, de que são uma cambada de preguiçosos que só querem beber, drogar e fornicar. É um erro ir por aí. O filme não é sobre isso, é precisamente sobre o dia-a-dia, sobre viver, sem que existam barreiras sociais ou as construções típicas europeias/ocidentais de quando se fala da juventude, de uma geração ou de um grupo específico de pessoas: a escola, o trabalho, o futuro.

Do que se fala aqui então? Celebra-se a vida a partir das coisas mais banais, abraça-se o prazer porque ele é finito: daí a ação também estar concentrada num verão, ele acaba. A dado momento o protagonista, Chico (Pedro Marujo), encontra-se com Quarta-Feira (Gonçalo Robalo) e diz-lhe que está a caminho de uma entrevista de emprego. Noutra década, este teria sido o momento em que Chico encontra o seu caminho e “Verão Danado” tornar-se-ia um filme em volta de um jovem à procura de emprego e do seu futuro. Cabeleira faz quase o oposto: deixa o seu filme prosseguir. E sem virar o volante, faz com que a narrativa também dê a volta na cabeça do espectador e que a vida – e a sua celebração – prossiga, tanto na tela, como no domínio do real.