Uns dias depois de ter chegado à Ilha Sentinela do Norte, Maurice Vidal Portman, oficial da marinha britânica, raptou um casal de idosos e quatro crianças indígenas que encontrou escondidos no meio da selva. Os adultos morreram, provavelmente por causa de doenças contra as quais não tinham imunidade, e as crianças foram libertadas uns dias depois. Mas esse seria o primeiro passo de uma história de raptos, abusos e mortes que transformariam os sentineleses na tribo mais isolada do mundo. Portman tinha o hábito de raptá-los no navio “Port Blair”, fotografá-los em poses homoeróticas e medir-lhes os genitais. Tinha um “fascínio particular” por eles.

Portman tinha apenas 19 anos quando foi escolhido pela Marinha britânica para rumar para as Ilhas Andamão e estudar as tribos com o  “toque nativo e raro dom” que tinha para “atrair amizades com nativos”. Pouco meses depois de ter lá estado, entre 1880 e 1900, o oficial decidiu organizar uma expedição especial à Ilha Sentinela do Norte para conhecer e fotografar uma tribo que nunca tinha tido contacto direto com o mundo moderno.

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No diário que manteve durante esses 20 anos, Portman descreve os idosos e as crianças que raptou como tendo uma “expressão peculiarmente idiota em semblante e maneira de se comportar” que “em muitos aspetos” se assemelhavam “ao estudante de inglês de classe média baixa”.

Mas Maurice Vidal Portman pode ter ido mais longe. Um internauta que utiliza uma conta de Twitter chamada Respectable Lawyer explorou os diários do comandante britânico e concluiu que o britânico devia estar “eroticamente obcecado com as tribos andamaneses” porque “alimentou a paixão pela fotografia sequestrando membros de várias tribos para as colocar em composições homoeróticas gregas simuladas”.

Uma dessas tribos seria a de Sentinela do Norte, com relatos de abusos por parte de Portman, supostamente para “medir e catalogar cada centímetro dos corpos dos prisioneiros com um foco obsessivo nos genitais”.

Segundo um estudo de Queens College, “a maior parte das fotografias de Portman eram convencionalmente eróticas, mais especificamente homoeróticas”: “Muitos destes homens são bem parecidos, já que não têm nada de lábios carnudos, maçãs do rosto altas e narizes espalmados como os negros; mas as mulheres têm uma beleza mais ao género de Vénus Hottentot [nome dado a duas mulheres negras do povo khoisan expostas como aberrações durante o século XIX]”, escrevia Portman nos diários.

Esse tipo de fotografias era comum na época porque desde a década de 30 que se tinha construído a ideia de que o império indiano era “essencialmente um mundo de homens”, diz o estudo — um “encontro entre dois homens fortes, uma relação de domínio entre um homem forte e um parceiro efeminado, uma aventura fraterna de casernas e campos de batalha ou um jogo de rapazes sem a corrupta distração das mulheres”, descreve Satadru Sen, autor do estudo.

Só que Portman ia mais longe. Numa das fotografias que captou, pôs três andamaneses em posições semelhante às das estátuas de deuses gregos com os genitais à mostra e ornamentados com peças brancas. E complementou essas imagens com as descrições dos genitais deles, com os quais Portman tinha um “fascínio particular”: um homem era descrito como tendo “testículos atrofiados, os dois duros mas do tamanho de ovos de uma ferreirinha, um pénis pequeno com um prepúcio de tamanho moderado”. Outro homem tinha “um pénis maior do que o normal”. Bia, uma mulher andamanesa, era descrido como tendo “uma barriga proeminente e peitos grandes e pendurados”. E outra mulher, Tra, tinha “uma considerável esteatopigia” — que acontece quando alguém tem tendência para acumular muita gordura nas nádegas.

De acordo com a conta de Twitter Respectable Lawyer, que publicou os documentos nas redes sociais, estes foram os encontros que levaram os sentineleses a serem tão hostis com outros visitantes: “As histórias foram certamente passadas entre os habitantes da ilha”, tanto que de cada vez que Portman saía da ilha e voltava ao navio, encontrava menos pessoas quando regressava, como o próprio admite nos diários que publicou. A certa altura, Portman desistiu e regressou a casa. Numa reunião da Real Sociedade Geográfica, Portman admitiu que “a associação deles com pessoas de fora não lhes trouxe nada além de dor”: “É motivo de grande pesar para mim que uma raça tão prazerosa se esteja a extinguir tão rapidamente. Poderíamos tê-los poupado”, afirmou.

Quase um século depois,  nos anos 60 e 70, o governo indiano tentou entrar novamente em contacto com eles através de antropólogos, mas sem grande sucesso. A exceção foi Trilok Pandit, que conseguiu visitar a ilha em 1967: “ Levávamos presentes, tachos, panelas, grandes quantidades de coco, ferramentas metálicas como martelos e facas compridas. Trazíamos também connosco três homens Onge (outra tribo local), na esperança que eles pudessem ajudar-nos a traduzir o que eles diziam e a forma como agiam”, explicou ao New York Times. Mas o esforço de nada valeu. Pelo menos não no imediato: só em 1991 é que Pandit havia de levar a investigação a bom porto.

Entretanto, nos primeiros minutos de 2 de agosto de 1981, um navio registado no Panamá com o nome “Pimrose”, cheio de ração para galinhas, encalhou num coral de recife na Baía de Bengala. Só quando o sol nasceu é que o capitão reparou que estava muito perto de uma ilha com praias de areia branca a envolver uma densa selva. Era uma ilha apetecível e estava a poucas milhas dali, mas o mar estava muito picado e os botes salva-vidas não sobreviveriam à curta viagem. Por isso, o capitão tomou a decisão de continuar dentro do navio à espera de ajuda. Mal sabia que estava em Sentinela do Norte. E que cada minuto era uma corrida contra a morte.

Ao fim de alguns dias, um marinheiro esperançoso pegou nos binóculos e viu um grupo de pessoas a sair da selva e a reunir-se na praia para observar o “Pimrose”. O marinheiro achava que seria uma equipa de resgate, mas um olhar mais atento permitiu-lhe encontrar “homens pequenos, bem constituídos, de cabelos crespos e pretos”: “Estavam nus, exceto por cintos estreitos que tinham à volta das cinturas. Tinham lanças, arcos e flechas nas mãos e começaram a acenar de uma maneira que não parecia muito amigável”, descreve o historiador Adam Goodheart.

Assustada, a tripulação do navio mandou um segundo pedido de ajuda, desta vez mais nervoso e impaciente: “Homens selvagens, provavelmente mais de 50, têm várias armas caseiras, estão a fazer dois ou três barcos de madeira. Estamos preocupados que possam chegar até nós assim que o sol se puser. A vida de todos os membros da tripulação não está em segurança”.

A mensagem foi recebida em Hong Kong, mas quase sem crédito nenhum: o porta-voz do governo até disse que o capitão do “Pimrose” só podia “estar maluquinho da cabeça”. Entretanto, enquanto se discutia se a tripulação do navio devia ou não ser salva, os marinheiros faziam turnos para combater os sentineleses caso eles se aproximassem. Tiveram de esperar uma semana até serem resgatados pelo governo da Índia. E só então perceberam em que ilha estavam.

Dez anos depois, em 1991, Trilok Pandit regressou à ilha. E só dessa vez conquistou um contacto “a sério” com a tribo da Ilha Sentinela do Norte. “Os guerreiros estavam com caras zangadas e fechadas, cheios de armaduras e com os seus longos arcos, prontos a defender o seu território”, descreveu Pandit. Mas o clima aliviou pouco tempo depois: “Ficámos completamente intrigados, sem perceber porque nos recebiam. Eles é que decidiram criar contacto e seguimos sempre as suas regras. Saltámos dos barcos, e ficámos ali, com água pelo pescoço, a distribuir cocos e outros presentes”.

Depois de ganhar a confiança dos sentineleses, Pandit e a equipa de antropólogos que seguiu com eles conseguiu entrar na ilha e perceber que provavelmente estariam ali há milhares de anos, depois de terem saído de África. Mas rapidamente foram obrigados a recuar para os navios: “Quando estava a dar uns cocos, acabei por me separar do resto da equipa e comecei a deambular. Ele olhou para mim, fez uma careta, pegou na sua faca e simulou que me cortaria a cabeça. Imediatamente recuei e juntei-me ao grupo. O gesto do rapaz foi bastante claro, não devia abusar”.

Ameaças de morte, cocos e um porco empalado: a história de Pandit, o homem que melhor conheceu os indígenas da ilha Sentinela

Depois disso, o governo indiano desistiu de contactar os sentineleses: percebeu que eles queriam permanecer incógnitos, longe das doenças modernas para as quais não tinham imunidade e que os tinha condenado à morte no século XIX. Prova disso foi o que aconteceu aos dois pescadores mortos depois de entrar na ilha quando a âncora do barco onde seguiam se ter soltado enquanto dormiam. Não havia margens para dúvidas: os sentineleses queriam ser mantidos em isolamento.

Esse isolamento voltou a ser quebrado em outubro, quando um jovem missionário norte-americano entrou na ilha na tentativa de converter a população de Sentinela de Norte ao Cristianismo. Não foi capaz. John Chau, de 27 anos, tinha pedido um barco e um grupo de pescadores que o pudesse levar até às ilhas na proximidade da Sentinela do Norte para evangelizar a população. Mas o plano não resultou e o jovem morreu ao fim de três dias.

Os últimos dias de John, o homem que a tribo mais isolada do mundo matou

De acordo com as descrições dos pescadores, o barco de madeira equipado com um motor parou a entre 500 e 700 metros da ilha. John Chau fez o resto do percurso a bordo de uma canoa enquanto os pescadores o esperavam no barco de madeira. Segundo as descrições deles, o missionário entrou na Ilha a 15 de novembro. No dia seguinte voltou ao barco com ferimentos de setas, mas quis voltar a encontrar-se com os sentineleses. No dia 17 já não voltou, mas os pescadores viram alguns membros da tribo a arrastarem-no ilha fora.

Entretanto, a Índia desistiu de procurar o cadáver do missionário morto na Ilha. Um antropólogo envolvido nas buscas, e que pediu para não ser identificado, explicou que as autoridades concluíram ser impossível recuperar os restos mortais de John Chau. “Decidimos não perturbar os sentineleses. Não tentámos contactá-los nos últimos dias e decidimos continuar a não tentar”, explicou o antropólogo. “Eles atiram flechas a qualquer invasor, e esta é a mensagem deles a dizer: ‘Não venham à nossa ilha.’ Nós respeitamos isso”, sublinhou.