O nome cheio de consoantes parece impronunciável, mas basta parti-lo em dois: Kraszna-horkai ou, melhor ainda, basta ler O Tango de Satanás, o seu primeiro romance, escrito em 1985, para nunca mais o podermos ignorar. Se é certo que nada nos salva daquilo que aprendemos, também nada nos salva dos livros que nos atrevemos a ler. E, 33 anos depois da sua publicação numa Hungria ainda sob o regime comunista, de onde o próprio autor estava proibido de sair, este romance que nos chega pela mão da Antígona continua a ser um bilhete sem volta num Apocalipse mental. Já começou a ouvir uns sinos a tocar ao longe?

Isso, os sinos das igrejas, ressoando milénios pretéritos, são um aparato que resiste às megalópoles onde a religião se tornou uma espécie de capricho e o sagrado passou a expor-se em montras iluminadas. Só à noite, quando diminui o ruído, podem ouvir-se em quase toda a cidade e, mais claramente, nas vilas e aldeias. Foi esse som que acordou Futaki que dormia num qualquer lugar ermo deste mundo, que tanto podia ser o Bloco de Leste durante a Guerra Fria, a América de Trump, a Venezuela de Maduro.

Mesmo sabendo que não havia igrejas por perto, Futaki não duvidou de que os sinos tocaram anunciando qualquer coisa terrível e, sem saber bem porquê, começou a preparar-se para o fim. Seja porque a morte está inscrita no nosso ADN, seja porque desde crianças nos habituámos aos noticiários onde há sempre um qualquer Apocalipse iminente, seja porque Krasznahorkai é um virtuoso da escrita e conseguiu escrever um livro onde o particular está sempre a resignificar o universal. O certo é que hoje, com os regimes comunistas mortos e enterrados O Tango de Satanás continua a ser um livro que amargamente espelha o nosso tempo. Desde logo porque há, na condição humana, coisas que são imutáveis e o inferno é sempre que um homem quiser.

László Krasznahorkai fotografado pelo cineasta Béla Tarr

Se, como escreveu Shakespeare em Macbeth, “life is a tale told by an idiot, full of sound and fury signifying nothing” [algo como “a vida é um conto contado por um idiota, cheio de som e fúria e que significa nada”], László Krasznahorkai leva este aforismo até às ultimas consequências, mas para se perceber isto é efetivamente necessário ler o livro até ao fim. O que implica enfrentar “o imparável rio de lava” que é a linguagem do escritor, os seus parágrafos compactos, pastosos, um ambiente de pesadelo onde todos parecem mover-se mas nenhum sai do mesmo lugar. Uma escrita e uma impotência que o cineasta Béla Tarr transpôs para os seus planos longos e alucinatórios, que resultam num filme de sete horas, ao qual se junta, a música de Vig Mihály; Satantango, de 1994.

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Este filme foi apenas um dos muitos que juntaram Kraszanahorkai, Tarr e Mihály, a santíssima trindade da cultura húngara pós-comunista, o último dos quais foi O Cavalo de Turim, 2011. Até dezembro do ano passado os livros de LK não estavam disponíveis em língua portuguesa e o universo deste escritor só nos era acessível através dos filmes de Tarr. Apesar da sua crescente fama que culminou com o prémio Man Booker International, em 2015, e de ser um sério candidato ao Nobel da Literatura, as suas obras densas, as suas frases sem fim são difíceis de traduzir. Georges Szirtes, poeta e tradutor, demorou oito anos a verter para inglês este Tango de Satanás, que Kraszanahorkai demorou sete anos a completar. A obra aparece agora traduzida diretamente do húngaro por Ernesto Rodrigues e com prefácio de Rogério Casanova e é seguramente um dos livros mais importantes editado entre nós no último ano.

Aqueles? Eram servos, e assim permanecerão até ao fim das suas vidas. Ficam ali sentados na cozinha (…) esperam, tenazes, obstinados, e pensam que foram simplesmente enganados. Esperam agachados, como gatos na matança do porco, à espera que caia algum pedaço. Esta gente é igual aos servos antigos que, mesmo depois de o senhor rebentar os próprios miolos, ali quedavam, desamparados, girando à volta do cadáver (…) são escravos que ficaram sem senhores, mas incapazes de viver a vida sem orgulho, dignidade e coragem. É isso que lhes alimenta a alma, mesmo que, no fundo dos seus espíritos obtusos, saibam que isso não emana deles, porque só gostam de viver à sombra desses valores”, fala Irimias em “Tango de Satanás”, capitulo II

É certo que a ideia de Apocalipse e as atmosferas de pesadelo têm tido em Portugal vários seguidores e acólitos. A tetralogia Cadernos Negros de Gonçalo M. Tavares tenta reproduzir estes estados de fragmentação mental e social porém, não é fácil ultrapassar a mestria de Kraszanahorkai. A diferença não reside sequer na forma como o húngaro estrutura a obra (seis capítulos para a frente e seis capítulos para trás retomando o ponto de partida, como os passos do tango argentino) mas no uso da linguagem que se desdobra em três vozes, três tempos, adensando a sensação de entropia, de existência de para-realidades à maneira kafkiana; cada capítulo serve para ouvirmos uma das personagens; as vozes que falam na sua cabeça, as palavras que dirige aos outros e a voz do narrador.

A escrita alterna entre estas três vozes como alterna o ângulo de visão sobre um mesmo acontecimento, criando uma circularidade claustrofóbica à maneira panóptica. Se, por um lado, os longos parágrafos, dão uma ideia de densidade, por outro, as constantes mudanças de ângulo de visão, bem como a sobreposição de temporalidades tão dispares como o tempo da coletividade e o tempo geológico da história do planeta criam o que o ensaísta James Wood chama de “paralisia dinâmica”, onde o pensamento distorcido e obsessivo se move sem produzir qualquer efeito no real.

A capa de “O Tango de Satanás”, Antígona Editores, 15,75 euros

Tango de Satanás: o inferno é aqui e agora

Como sabemos, o Apocalipse traz consigo senão o Messias, pelo menos um forte desejo messiânico como se viu nos diferentes regimes ditatoriais que flagelaram o século XX. Incapazes de se moverem no meio de um dilúvio (a chuva e a ventania são elementos que atravessam várias obras deste escritor), os últimos habitantes de uma coletividade arruinada nos seus edifícios, nas suas máquinas, nas suas utopias, tornaram-se criaturas predatórias, animais que se vigiam mutuamente. O alcoolismo e a demência alastram e convivem com os planos de fuga que cada um tece dentro de si como uma boia de salvação que pode ter a forma de religião, da satisfação sexual, de riqueza, de suicídio. Cada um vive preso à espera de uma redenção que já não passa pela ideia de comunidade. Morto o corpo coletivo que os regimes comunistas tentaram impor sobra agora o corpo individual, concreto, obsolescente e cheio de desejos prosaicos como ternura e copos de palinca.

É num desses dias, que se multiplicam em anos sem que nada aconteça, que Futaki acorda ao som dos sinos, ao lado da amante, a SrªSchmit, cujo corpo voluptuoso se oferece como evasão a todos os homens do lugar, incluindo o adolescente de doze anos, Sanyi. É nesse dia que regressam Irimias e Petrina, vindos não se sabe de onde, nem com que intenções. Prisioneiros, criminosos, mortos-vivos, portadores do Apocalipse ou Messias eles podem ser qualquer coisa. Nunca saberemos. Mas a sua chegada é o motor da ação ou melhor, o motor da promessa. Pois, tanto quanto sabemos, face a uma promessa bem construida os homens facilmente abdicam dos atos que a cumpram.

Na coletividade arruinada resta uma taberna onde se vende tudo e as aranhas escondidas insistem em multiplicar as suas teias sobre qualquer objeto ou corpo imóvel. A escola, o centro cultural, a fábrica tudo fechou, os que ficaram para trás não têm sequer nomes próprios, apenas o sobrenome ou a função que um dia desempenharam como “doutor” ou “professor”. A única personagem que merece essa singularidade é Estike, a menina demente à mercê da violência e do desprezo de todos os outros. Neste mundo de fantasmas ela é a mais solitária das criaturas,  mas também a mais corajosa, por isso é ela a personagem determinante nesta história e não os messiânicos Irimias e Petrina, como uma leitura superficial pode fazer crer. É o suicídio de Estike que trará a mudança, desfará as máscaras e os sonhos, ainda que apenas por um instante.

[Excerto da banda sonora de “Tango de Satanás”, composta por Mihály Vig para a adaptação ao cinema assinada por Béla Tarr:]

Frontalmente contra o regime comunista, Krasznahorkai estava impedido de sair do país e era vigiado pela policia. Sairá da Hungria,  pela primeira vez, em 1987, dois anos depois de publicar este Tango de Satanás. Tinha 33 anos. Leitor precoce de Kafka, de Dostoievsky e Lowry, Lázló estudou direito e literatura (que concluiu com uma tese sobre o escritor Sándor Márai) mas durante anos empregou-se em trabalhos humildes em regiões remotas do país. Foi editor, guarda noturno de quintas e diretor de centros culturais, tornou-se alcoólico, estado que irá determinar o tom lento e pastoso deste livro.

É certo que nos anos 80 estes regimes já estavam muito mais brandos e só isso explica que o romance não tenha sido censurado. O editor usou-o para, corajosamente, afrontar o regime de Janós Kádár pois, nesses anos, era impossível ler nesta obra algo mais do que uma parábola sobre a agonia do marxismo-leninismo. Depois de viver em Berlim leste e da queda do muro, LK vai para a Mongólia, China e Japão, vive durante alguns anos em Nova Iorque como inquilino do poeta Allen Ginsberg. Aos poucos, as suas obras foram sendo traduzidas sobretudo nos países de língua alemã e no antigo bloco de leste. Foi lido por Susan Sontag que o considerou “um mestre. Foi lido por Sebald, por James Wood, foi comparado a Gogol e o profético Irimias comparado a um Hamlet no reino podre das ditaduras comunistas. A sua colaboração com Béla Tarr, que começou em 1985, seria determinante para a divulgação de um universo absolutamente singular na história da literatura contemporânea.

A descida ao inferno pela mão de LK não é das personagens, porque elas já lá estão, nem é do narrador, porque também ele já aprendeu a dançar aquele tango melancólico com Satanás. A descida ao inferno é de cada leitor que aceite entrar neste baile onde a música parece ter estado sempre dentro de nós como um horror que só precisava do momento certo para desabrochar. Kraszanahorkai é o Messias que nos coloca à frente não um futuro, mas um espelho onde somos obrigados a encarar a nossa própria miséria, o nosso inferno particular que, independentemente dos regimes políticos, é a única coisa que resta quando caíram por terra todas as (auto)ilusões.

Imagem do filme homónimo realizado pelo cineasta húngaro Béla Tarr e considerado uma das obras primas do cinema europeu (1994)

Só nos resta a esperança de que a nossa história seja contada. Contar, narrar é assim o único gesto que pode salvar os homens, as coletividades, os regimes, do desaparecimento sob a lama do tempo. Por isso, a figura do observador-arquivista é transversal aos romances de LK. Nela fundem-se o guardião e o vigilante, o escritor e o redator de relatórios da polícia política, o tempo cósmico, o tempo histórico e o tempo individual. O “doutor”, um homem alcoolizado e meio louco é, nesta obra, o alter-ego do escritor Kraszanahorkai, o único que pode salvar aquelas vidas olhando e registando cada um dos seus gestos e pensamentos.

É impossível não encontrarmos aqui ressonâncias beckettianas, sobretudo nas figuras de Irimias e Petrina. Eles são a versão politizada das personagens da peça Endgame, também eles sobreviventes de um Apocalipse inexplicável e condenados a viverem à mercê um do outro. Apesar da violência e melancolia, O Tango de Satanás é também profundamente irónico, porque não há, da parte do escritor, qualquer complacência com as suas personagens e, portando, consegue dá-las a ver na sua fragilidade e no seu ridículo como nos lembra a frase de Macbeth citada mais acima.

Como o pai no filme Cavalo de Turim (com argumento do escritor húngaro), as personagens masculinas de Kraszanahorkai têm sempre algo de bíblico, como nota James Wood. Mas são homens cuja força está em declínio e se assemelham ao escorço de um Cristo morto como foi pintado pelo renascentista Andrea Manteña e que Béla Tarr evoca várias vezes ao longo deste filme. Pois os profetas de Lk são invariavelmente falsos, homens espiritualmente impotentes. Se Deus foi arredado deste universo, os profetas são pobres diabos e as crianças não têm qualquer  inocência, isso não impede que a realidade não tenha lugares misteriosos e indecifráveis e a qualquer instante não surja um vislumbre de sagrado nos objetos ou nos corpos mais destruídos e banais.

Agora que a editora Antigona está a investir na tradução de escritores e línguas do leste europeu, e se prepara para, em breve, publicar Uma Solidão Demasiado Ruidosa do grande escritor checo Bohumil Hrabal, esperamos não ter que aguardar mais 30 anos para ler de novo László Kraszanahorkai.