Nome: Em Todas as Ruas te Encontro
Autor: Paulo Faria
Editor: Edições Minotauro
Páginas: 134
Preço: 13,90€

A capa de “Em Todas as Ruas te Encontro”, de Paulo Faria (Edições Minotauro)

Depois de Estranha Guerra de Uso Comum (2016) e Gente Acenando Para Alguém que Foge (2020), Paulo Faria regressa ao romance com Em Todas as Ruas te Encontro, uma história sobre a pandemia que nos tem vindo a confinar há já quase um ano. Sempre que um livro tem um assunto tão explícito, é costume a crítica literária, por vontade de se mostrar relevante e perspicaz, dizer que não é bem esse o verdadeiro tema da obra, mas antes, por exemplo, o amor, o ciúme ou coisa que o valha. Pois bem, não há volta a dar: Em Todas as Ruas te Encontro é, de facto, um romance sobre a pandemia. Não só por ser esse o cenário de fundo, mas acima de tudo porque se debruça sobre traços particulares desta coisa bizarra que é estar vivo trazidos a lume pelo coronavírus. Evidentemente, estas particularidades da experiência humana não são sintomas do vírus e já por cá andavam há uns tempos, mas a obrigatoriedade de conviver com cônjuges e rebentos vinte e quatro horas por dia com uma pandemia a cercar-nos por todos os lados teve o condão de as exacerbar.

O romance conta então a história de um casal e da sua filha, Sónia, e das três maneiras extraordinariamente distintas que têm de encarar uma catástrofe com este traço paradoxal de ser tão letal quanto subtil. Carlos fica absolutamente paranoico e propõe-se a não ceder um centímetro às superfluidades da vida (entre as quais se conta, por exemplo, abraçar as pessoas que ama) como se isso o protegesse de alguma coisa; Irene refugia-se no silêncio e no secretismo e Sónia, alérgica a vozes em coro, busca pequenas insurreições artísticas que a tornam numa reencarnação de Julia, a personagem de 1984 que é apenas capaz de pequenos gestos pontuais de rebeldia, cujo único fruto é tornar por demais evidente o triunfo irrevogável do Grande Irmão.

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Paulo Faria tem uma capacidade assinalável de destrinçar o absurdo no meio da tragédia ou de tornar claros os paradoxos de quem oscila entre um otimismo infantil e um pessimismo desesperado. No entanto, parece por vezes deixar-se levar por uma certa falta de subtileza, o que transforma, em alguns momentos, as personagens em bandeiras ou representações simbólicas de realidades maiores do que elas e que acabam por lhes apagar o rosto, como acontece, por exemplo, quando inverosimilmente as pessoas à varanda desatam a cantar “A Portuguesa” e a aplaudir com estrondo a descrição da chacina de uma aldeiazinha na Guiné, durante a Guerra do Ultramar. Paulo Faria parece aqui querer denunciar o patriotismo cego que nos leva a aplaudir com entusiasmo as nossas façanhas históricas, negligenciando o mal que estas trouxeram às populações nativas, mas deixa-se cair num exagero que suspende a suspensão voluntária da descrença que constitui a literatura, como disse famosamente Coleridge. Tudo isto, importa sublinhar, é acessório perante as virtudes do romance e retrata muito mais uma característica da ficção contemporânea do que propriamente um defeito do escritor.

Ainda que o romance seja, de facto, sobre a pandemia, as suas maiores virtudes evidenciam-se sobretudo nos episódios que decorrem antes de março de 2020. Tal como já acontecera em Estranha Guerra de Uso Comum, Paulo Faria torna a tratar um tema que lhe é muito próximo, a Guerra do Ultramar e, de novo, fá-lo com enorme mestria. O episódio da destruição, por parte dos soldados portugueses, da aldeiazinha em Caboiana ocupa o centro do romance e brilha mais do que qualquer outra cena (exceção feita a todo o capítulo sobre Irene ou à excelente reinterpretação do mito de Orfeu a propósito de uma ida ao supermercado), como aliás Fernando Cabral Martins sublinha no posfácio. Também a peripécia no metro em Paris, decorrida antes da pandemia nos atingir, parece ser mais apta a descrever Carlos do que todas as suas atitudes durante os meses de confinamento, o que não deixa aliás de corresponder à ordem natural das coisas.

Seria, contudo, um erro acreditar que Em Todas as Ruas te Encontro falhou na captação desta estranha forma de vida que é agora a nossa. Paulo Faria nota com argúcia, por exemplo, como o chamado novo normal vem trazer novas formas de exploração, das quais talvez só venhamos a sentir as reais consequências quando tudo isto acabar, tal como chama a atenção para o drama que é ser dado tempo e tédio a pessoas que manifestamente não sabem o que fazer com ele, um alerta que, não sendo novo (veja-se, por exemplo, o que disse Pascal sobre o assunto), não tem sido sublinhado o suficiente pelo exército de especialistas que invadiu as televisões. No entanto, é absolutamente normal que um romance que procure retratar este isolamento, que tentamos amenizar com ecrãs que projetam a nossa cara despixelizada em outros ecrãs, fique aquém da realidade. Não só porque é esse, afinal, o destino último da literatura, mas acima de tudo porque estamos a lidar com este fenómeno raro pela primeira vez em muito, muito tempo e, se o caminho de um escritor é sempre solitário, Paulo Faria, ao propor-se a escrever sobre uma situação tão peculiar e pouco tratada, não tem, sequer, ombros de gigantes onde se apoiar.

joaopvala@gmail.com