[Atenção: este texto pode conter spoilers sobre os novos episódios de “Lupin”.]

Janeiro de 2020. Enquanto as primeiras vacinas contra a Covid-19 são administradas a conta-gotas, o mundo avança a diferentes velocidades. Desconfinamentos em alguns países, tudo fechado noutros, recolheres obrigatórios e horas infinitas para ocupar em casa. Aparece “Lupin”, uma série francesa que podia perfeitamente ter ficado perdida entre os milhares de conteúdos da Netflix mas que rapidamente se transforma num fenómeno à escala global. França, Itália e o resto da Europa rendem-se primeiro, depois é a vez dos Estados Unidos da América, com a produção a chegar aos primeiros lugares do top 10. De acordo com o serviço de streaming, nos 28 primeiros dias “Lupin” foi vista 76 milhões de vezes. O motivo para tanto alarido? Sinceramente não sei, não lhe reconheci mérito na Parte 1 (é assim que a Netflix se refere às temporadas) e continuo sem encontrar as tão elogiadas qualidades nos cinco novos episódios — todos disponíveis a partir desta sexta-feira, 11 de junho.

Se fazem parte do clube de fãs deste ladrão moderno, é na porta ao lado. Não consigo defendê-lo e, garanto-vos, não é por falta de esforço. Omar Sy (que aqui é o protagonista, Assane Diop) é um ator exemplar: cheio de carisma (“Amigos Improváveis”), sentido de humor e um lado dramático que já defendeu sem falhas em papéis anteriores menos mediáticos (como em “Samba”). Desta vez, nos cinco capítulos — um total bastante curto para o que é habitual numa temporada da Netflix — da Parte 1 parece estar sempre a cair no exagero. Nem nas expressões faciais é possível encontrar credibilidade. No entanto, é preciso reconhecer, essa parte parece resolvida na Parte 2 e Sy mergulha a fundo no lado gingão da personagem. É um bad boy justiceiro, torcemos por ele. Mas, calma, só acreditamos nos seus truques e fugas engenhosas até certo ponto. Nesta temporada, o limite está mais do que ultrapassado.

[O trailer da parte 2]

Se recuarmos até ao início da série, é o roubo espetacular de um colar no Museu do Louvre, em Paris, que desencadeia uma história de vingança e reposição da verdade. Hupert Pellegrini (Hervé Pierre) é o vilão, um rico que anos antes incriminou injustamente o pai de Assane Diop pelo roubo da mesma joia, mandando depois matá-lo na prisão. Diop quer vingar e limpar o nome do pai e vai fazer tudo para que Pellegrini seja desmascarado. Os seus esquemas inspiram-se em Arsène Lupin, o “ladrão gentleman”, figura muito conhecida da literatura francesa. Esta caça de gato e rato não é nova, já se viu dezenas de vezes noutros formatos, mas voltou a funcionar na produção criada por George Kay. Não sei se foram as perseguições alucinantes ou as luzes hipnóticas de Paris que juntaram tantos fãs. Prefiro culpar a pandemia e um aborrecimento generalizado que pedia com urgência algum conteúdo empolgante, fosse bom ou mau.

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O maior problema de “Lupin”, para mim, sempre foram as incongruências. Amontoaram-se como cadáveres na Parte 1 e nos cinco novos episódios acontece exatamente a mesma coisa. Há pormenores banais que nunca são explicados e essa atenção ao detalhe faz toda a diferença entre uma boa e uma má série.

Por exemplo, Pellegrini está numa sala de interrogatórios com dois polícias. Tem o telemóvel em cima da mesa (não sou entendida na matéria mas posso apostar que isto não é um procedimento normal, seja o interrogado o Zé da esquina ou o Papa) e atende uma chamada. Ok, como o próprio magnata diz, tem amigos muito bem posicionados. Vamos então esquecer este pormenor e passemos ao próximo: o homem que anda atrás de Assane aproveita para entrar no prédio dele quando o amigo, Ben (Antoine Gouy), está a sair. Teoricamente não sabe onde Diop mora mas rapidamente descobre qual é o andar e a porta. E entra sem qualquer resistência. Estamos a falar da casa de um ladrão profissional que se esconde de toda a gente. Não estaria este apartamento protegido em condições? E quando Assane tem de fugir de casa e leva o cão, J’accuse? Onde está o animal na cena seguinte quando resgata o amigo Ben? Assane Diop é o homem mais procurado de França, não deve ter tido tempo para ir deixar o bicho num hotel para cães, certo? Os fãs de “Lupin” vão arranjar sempre justificações para estas inconsistências mas serão todas tão fracas como a narrativa.

Eu sinto que os guionistas se sentaram numa sala, atiraram para umas folhas mais umas perseguições de carro, uma cena de suspense numa mansão abandonada, passeios de mota pela idílica Paris e está feito. Pelo meio há uns flashbacks para um Assane adolescente e algumas cenas que pretendem explicar o golpe que vimos nos minutos anteriores (ao estilo de “La Casa de Papel”). Os polícias continuam tão totós como da primeira vez — porque é que quando vão deter alguém ligam as sirenes todas e fazem sempre uma derrapagem antes de largarem o carro no meio da estrada? Elemento surpresa, já ouviram falar?

Destacam-se duas personagens deste grupo, Youssef Guedira (Soufiane Guerrab), o geek dos livros de Lupin que ninguém leva a sério, e Dumont (Vincent Garanger), o comissário corrupto que é tão submisso a Pellegrini que só falta deitar-se no chão para este lhe passar por cima. Estes dois últimos parecem saídos de uma história para crianças. São maus e pronto, não têm qualquer densidade além de quererem ficar com dinheiro que não lhes pertence e de tentarem eliminar quem os quer desmascarar (que, no fundo, se resume a Assane Diop).

A Parte 2 retoma a história no ponto em que ela tinha ficado em janeiro: em Étretat, com Diop e a sua ex, Claire (Ludivine Sagnier), desesperados à procura do filho que acaba de ser raptado. A série tinha aqui a oportunidade de tomar um rumo diferente da primeira temporada mas repetiu padrões, fazendo de “Lupin” uma produção com ritmo (a banda sonora ajuda muito) mas completamente previsível. Os maus são apanhados e os bons ganham sempre. Fim.

Daqui para a frente, ou “Lupin” se reinventa como um dos truques espetaculares do seu protagonista ou não vai conseguir aguentar-se apenas com o carisma e as boinas cheias de estilo de Omar Sy.