Os filhos de Michael Jordan nunca conseguiram jogar basquete como o pai e não consta que ninguém nascido de um espermatozóide de Picasso alguma vez tivesse mostrado talento com o pincel. Há certas profissões em que é simplesmente quase impossível seguir os passos dos pais: médicos, engenheiros e advogados tendem a ter filhos médicos, engenheiros e advogados, mas o talento para saltar, pintar ou cantar tende a ser mais aleatório e a fugir ao controlo parental.

Pelo que se entende que aquando da aparição dos Goon Sax se falasse tanto nos Go-Betweens como nos próprios Goon Sax, cujo líder, Louis Forster é filho de Robert Forster, um dos dois compositores dos Go-Betweens. Não se tratou apenas de mencionar a parentalidade – as canções dos Goon Sax foram comparadas às dos Go-Betweens, com as quais tinham ocasionais semelhanças; no mínimo podia dizer-se que era razoavelmente claro que Louis Forster crescera a escutar a coleção de discos do pai, não obrigatoriamente os que o pai escreveu, mas pelo menos os que o pai ouvia.

Nada disto invalidou o reconhecimento do talento dos Goon Sax, tanto em Up to Anything (a estreia, de 2016) como em We’re Not Talking (de 2018). Louis herdou a dicção distante, elegante e vagamente snob do pai e aprendeu a criar refrões solares similares aos de Grant McLennan, o eterno companheiro de viagem de Robert. Up to Anything e We’re Not Talking eram compêndios de como escrever guitarras indie com refrões que eram como girassóis a erguer-se da pauta para o sol.

[“In The Stone”:]

Não é exatamente como se isso tivesse desaparecido da música dos Goon Sax, mas Mirror II (o terceiro e extraordinário novo disco do trio) é incomensuravelmente mais escuro, com o negrume a invadir os mais ínfimos recantos de cada canção; para não abandonar as comparações com os Go-Betweens, é como se os Goon Sax tivessem deixado de ouvir Before Hollywood, Spring Hill Fair ou Liberty Belle and the Black Diamond Express (os discos mais luminosos da banda do pai Forster) e submergissem em Send Me a Lullaby, o primeiro disco dos Go-Betweens, ainda marcado pela new wave.

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Send Me a Lullaby será certamente o disco mais fraco dos Go-Betweens, mas o mesmo não acontece aqui: logo ao primeiro tema, “In the stone”, que se reduz quase a uma linha de baixo, um riff repetitivo e a voz cheia de patine de Louis (em dueto com Riley Jones, baterista e compositora da banda), o negrume acaba num tremendo e melancólico refrão, dobrado por uma guitarra saída de um disco dos Cure circa Disintegration. Antes da coda as vozes ficam suspensas, rodeadas apenas de palmas, e está encontrada uma das grandes e mais perfeitas canções de 2021.

Apenas uma canção depois e “Psychic” atira-nos toalhas de sintetizadores que se revelam uma máquina do tempo capaz de nos fazer regressar ao tempo em que os Cure propunham “Let’s go to bed”, guitarras cheias de ruído à Jesus and Mary Chain em fundo e, como seria de esperar, um inesperado refrão que vira a mesa ao contrário, saca do trunfo quando já não se esperava mais que um par de manilhas e, com o volume no máximo, chega um straight-flush.

[“Psychic”:]

O que surpreende em Mirror II é que, por trás dos sintetizadores e do ruído das guitarras, há ordem onde antes reinava o caos – Up to Anything e We’re Not Talking eram discos em que maracas, castanholas e sopros surgiam numa curva inesperada, onde as leis da construção ditaria a presença de uma ponte. Se Up to Anything e We’re Not Talking eram discos de crianças com défice de atenção e um conjunto infindável de Legos, Mirror II é um álbum de eruditos da arquitetura gótica.

A diminuição do grau de caos não implica menor surpresa – os refrões continuam a contrastar com os versos, as pontes desenham arcos que a física não prescreve, as melodias desafiam o conceito de afinação com aquela confiança apenas possível em quem ainda não viu os sonhos destruídos pelo IRS (notável a forma como Riley Jones entra e sai da afinação em “Tag”, lembrando os Yo La Tengo), os versos rimam mas de forma manca como uma mesa só com três pernas que ainda assim conseguem fazer de conta que formam um quadrado. Canção após canção há algo de surpreendente, como asas numa bicicleta ou um ingrediente que não era suposto estar nesta sopa. Simplesmente agora essa surpresa parece obedecer a um processo de depuração, em que na canção fica apenas o essencial, em vez de ser um caixote para onde se atira toda a tralha.

[ouça “Mirror II” dos The Goon Sax na íntegra através do Spotify:]

Numa banda que, por via da ascendência parental de um dos seus membros, cresceu em público e que insiste em não parar quieta num som e que tem três compositores, o grau de acerto tende a ser variável – em “Mirror II Tempes”, escrita por James Harrison, é o elemento dispensável, por via de uma melodia que se enrodilha mais vezes que o mar quando encontra a areia: a canção dá tantas voltas que a dado momento parece não ir a lado nenhum, como um táxi em Nova Iorque que se tivesse enganado no atalho.

Esse erro é redimido logo na canção seguinte, a extraordinária “The Chance”, que parte de um riff muito simples (e a entrega cheia de patine de Louis) antes de ir sendo enchida, primeiro com um piano (um instrumento inesperado numa canção new wave), depois com um pedal de distorção furioso e a voz de Riley em mais um refrão com a mesma capacidade de fazer cair o queixo como um soco de um boxeur em topo de forma.

Fora com os sopros, as castanholas e os violinos, agora é hora dos sintetizadores à Fad Gadget e guitarras sujas – e com este negrume uma espécie de cinismo existencial. Os temas das canções dos Goon Sax sempre foram um só: o quão danado é ser garoto neste mundo, um tema analisado dos mais variados ângulos (os falhanços amorosos, a solidão, as figuras ridículas que se fazem na era da auto-exposição, a ausência de amor-próprio), mas subjacente a toda esta auto-análise estava um romantismo sem rédeas, pueril próprio de quem ainda não fazia a barba.

[“Desire”:]

Os temas não mudaram: no mundo dos Goon Sax continua a ser danado ser garoto, os falhanços amorosos sucedem-se à velocidade de um swipe, a solidão espreita por entre as várias contas nas redes sociais, que parecem não contribuir para nenhum acréscimo de amor-próprio e não há feito que não acabe com uma figura ridícula (na era da auto-exposição). Só que desta vez há uma secura emocional apropriada em que já levou uns coices e começa a desconfiar que os mares de rosas têm, sobretudo, espinhos.

Isto não é propriamente óbvio quando Louis fala em alemão por cima da extraordinária batida de Bathwater, enquanto uma guitarra estrebucha nos agudos e um saxofone parece morrer esganado; isto não é propriamente óbvio na beleza ferida de “Til Dawn”, mais um dueto com guitarra elétrica em fundo; é preciso parar e ouvir o que eles cantam para concluir que para os Goon Sax só as canções salvam e tudo o resto é ruína.

Na maravilhosa “Desire”, um inusitado cruzamento dos Berlin com os My Bloody Valentine, Riley canta (piscando o olho aos Stone Roses) “I want to be adored”. Os Go-Betweens nunca conseguiram encontrar o êxito que o seu talento merecia; duas décadas depois, esperemos que o mundo já tenha lavado os ouvidos.