A escritora Ana Luísa Amaral defendeu, em entrevista à Lusa, que “a poesia não tem de ter mensagem nenhuma”, e criticou a “galeria de diferentes verdades” que “extremaram” as discussões “a um ponto insuportável”.

“Chocou-me bastante, uma vez, uma pessoa que me disse que as palavras não lhe interessavam para nada, o que lhe interessava era o que elas convocavam. Mas então, onde está a poesia? A poesia é feita de palavras”, afirma a poeta.

Ana Luísa Amaral falava à Lusa a propósito da edição de “Mundo”, o seu mais recente livro, editado pela Assírio & Alvim, que chega esta sexta-feira às livrarias.

Na sua poesia reconhece, não necessariamente uma voz, já que acha que “são vozes diferentes”, mas uma “tonalidade”, que “tem a ver, talvez, até com intensidade”.

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“Eu acho que [essa intensidade] falta muito a muita poesia que eu conheço hoje em dia”, revela.

Olha para os dias em curso e encontra “uma profundíssima ignorância que corre hoje”, numa era em que “as pessoas vivem muito deste mundo virtual — do Twitter, Instagram, Tiktoks –, e tudo é tomado como verdade. Depois são as frases que chegam, em vez de chegar o escritor que se lê”.

Para a escritora, “a poesia não tem de ter mensagem nenhuma”.

O que tem de haver, considera, “é a paixão pela língua e pelo que os outros escreveram. Todo o escritor é um leitor. Sempre”.

Isso é uma ideia um bocadinho neorrealista, na chamada poesia comprometida, que a poesia tem que ter uma mensagem, de passar uma mensagem da desigualdade, da luta de classes. Nós, enquanto seres humanos e cidadãos e cidadãs, sendo comprometidos com o mundo, é natural que essas preocupações de alguma maneira transpirem para aquilo que nós fazemos, que nós escrevemos”, concretiza.

A escritora refere que “é como se houvesse uma galeria de diferentes verdades”.

“Parece que agora se selecionam verdades, e parece que essas verdades que se selecionam são únicas, intocáveis, imutáveis”.

O comentário vem a propósito da poeta norte-americana Amanda Gorman e da polémica em torno da tradução do seu livro, que devia ser feita por uma mulher “jovem, ativista e negra”.

Para Ana Luísa Amaral, toda a questão foi “um perfeito disparate”.

“Então isto significa que não posso traduzir Langston Hughes, o grande poeta negro, porque não sou negro? Ou que um tradutor negro não pode traduzir uma poeta branca?”, questiona.

A escritora refere ainda que “The Hill We Climb”, lido por Amanda Gorman na cerimónia de inauguração do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, é “um manifesto absolutamente fundamental”, mas “não é um poema”.

Esclarecendo que é “completamente solidária com as causas” em questão, como o racismo, refere que este tipo de exclusões prejudicam as conversas.

Acho que as coisas se extremaram a um ponto insuportável. (…) Tudo está tão polarizado que se tornou impossível o diálogo, e acho que as redes sociais são culpabilizadíssimas nisto. Mais do que as redes sociais, acho que os governos são profundamente culpados nisto, porque não controlam as redes sociais, e devia haver um controle. (…) Não pode, isto não é liberdade. Quando a minha liberdade colide com a liberdade do outro deixa de ser liberdade”, remata.

Nascida em Lisboa, em abril de 1956, a escritora e professora universitária Ana Luísa Amaral, tradutora de romancistas e poetas, vive em Leça da Palmeira desde os 9 anos e tem recebido múltiplas distinções ao longo da carreira, sendo as mais recentes o Prémio Vergílio Ferreira, da Universidade de Évora, o galardão espanhol Leteo, da Direção de Ação e Promoção Cultural de Leão, e o Prémio Rainha Sofia de Poesia Ibero-Americana, que reconhece o contributo significativo de uma obra poética para o património cultural deste universo.

Doutorada em Literatura Norte-americana pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto, onde foi professora, Ana Luísa Amaral tem dezenas de títulos de poesia publicados, desde “Minha Senhora de Quê” (1990), além de já ter escrito teatro, ficção e vários livros para a infância.

A sua obra encontra-se traduzida e publicada em várias línguas e países, tendo obtido numerosas distinções, como o Prémio Literário Correntes d’Escritas, o Premio Letterario Poesia Giuseppe Acerbi e o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores.

No “Mundo” de Ana Luísa Amaral “cabe tudo”

No “Mundo”, o novo livro de Ana Luísa Amaral, “cabe tudo” — “tanto pode caber uma formiga, quanto uma centopeia, a crueldade do mundo, as desigualdades”, explicou a poeta.

“Acho que no ‘Mundo’ cabe tudo. (…) [O livro] é uma tentativa, nunca resolvida — porque, se não, deixaria de escrever –, das minhas interrogações perante o mundo”.

A autora questiona “porque é que queremos saber tanto sobre o universo”, respondendo imediatamente que se trata de uma busca por “um lugar de onde teremos, eventualmente, vindo”.

“E viemos mesmo, porque, como já disse várias vezes, e escrevi, o próprio Shakespeare diz, somos feitos da matéria das estrelas. O cálcio das mãos, o corpo, é o mesmo cálcio que existe numa estrela, num corpo estelar”, prossegue.

De volta ao “Mundo”, Ana Luísa Amaral esclarece que, naquelas páginas, “tanto pode caber uma formiga, quanto uma centopeia, a crueldade do mundo, as desigualdades”.

Os últimos temas surgem em poemas como “As cores da Servidão”, que trata “a questão da servidão, da segregação, discriminação, colonização, quer relativamente às mulheres, quer relativamente aos pobres, quer relativamente ao outro”, mas também “Dois Cavalos: Paisagem” ou “Estudo Político”.

Ainda que haja também um “Buraco negro: o silêncio do escuro”, o questionamento a que a autora se referia no início da entrevista surge mais na relação com o mito.

“Das sagas e das lendas: pequeníssima fábula do contemporâneo” será o exemplo mais evidente disso, e surgiu de uma discussão com Ben, marido da sua tradutora, Margaret Jull Costa, a quem o poema é dedicado.

O ponto de discórdia era se tinham aparecido primeiro os vikings ou primeiro os romanos, como defendia Ben.

Efetivamente, primeiro vieram os romanos. Foi a partir daqui que escrevi aquilo, e é uma tentativa de desmistificação, daquela ideia que temos das fábulas, das lendas, dos mitos, e da pureza rácica. De uma suposta pureza rácica que não existe”.

Mas o poema toca também “a questão de género, as mulheres no doméstico e os homens na guerra, depois também a questão das sexualidades, mesmo no final, todos dando filhos, sendo motivos de literatura, mas se calhar aquele olhando, amando, cobiçando, o homem do lado, e ela a sua aia, no fundo são sexualidades não normativas”.

A poeta explica que “a primeira parte do livro foi muito escrita em confinamento, embora nos primeiros seis meses de confinamento não tenha conseguido escrever nada”.

“Estava tão assoberbada com o que se passava” e, “ainda por cima, tinha deixado de fumar havia um ano”, que o processo se tornou penoso, explica, enquanto se confessa “viciada” em pastilhas de nicotina.

Essa experiência chega no “Intervalo”, terceira parte do livro, onde, em “Ode ao Cigarro”, passa da terceira para a primeira voz para dizer: “Sei que não posso ter-vos outra vez/ entre os meus lábios como fogo ardente,/ que agora é tempo de cumprir o ar,/ ser de pulmão o mais eternamente que consegue o humano, ou seja, uns anos/ a prolongar um pouco a minha vida.”

“Mundo” tem poemas antigos, alguns que não couberam em “Ágora”, editado em 2019, e tem outros mais recentes.

Ana Luísa Amaral mostra a varanda onde, “A abelha fez/ a sua entrada triunfal/ neste pequeno pinheiro de varanda morto há já algum tempo,/ colonizado agora/ por uma hera de folhas como trevos/ ínfimas flores lilases”, como se lê no seu livro.

Como “A abelha”, também “A formiga: peregrinatio” ou “A centopeia: cena quase bíblica” surgem “um bocadinho como as propostas do alto romantismo”.

“Estou a pensar no [William] Blake, quando diz ‘to see a world in a grain of sand’ [‘ver o mundo num grão de areia’], porque, se pusermos um grão de areia num microscópio, tem um mundo lá dentro. (…) É o quotidiano, as coisas pequeníssimas do quotidiano, mas também é o buraco negro”.

Esse quotidiano surge, “claro, na sua glória, porque, como dizia Emily Dickinson, para fazer uma pradaria basta um trevo e uma abelha, ‘and reverie’ — e a fantasia”.

Por outro lado, “não é tanto a glorificação, é o espantamento”.

“Acho que o meu livro é uma espécie de glorificação, sim, da vida. Mesmo no desconcerto que é o mundo, mesmo no horror que existe no mundo, mesmo na crueldade que existe no mundo, estar vivo é, como dizia Dickinson, Poder — com maiúscula”.

“Mundo” é editado pela Assírio & Alvim.

Um tradutor deve “ter uma imensa paixão pela sua língua”

Ana Luísa Amaral, que é também tradutora, defende que “a primeiríssima exigência de um tradutor é ter uma imensa paixão pela sua língua”, porque só assim é que a pode conhecer muito bem.

Para a escritora, que também traduz literatura, “a primeiríssima exigência de um tradutor é ter uma imensa paixão pela sua língua”.

Quando estamos muito apaixonados por alguém, queremos conhecer muito bem a pessoa, saber tudo sobre a pessoa. O que fizeste quando eras criança, onde é que andaste, tudo, tudo, tudo. Estando apaixonado pela nossa língua, queremos saber tudo sobre ela. Ao querermos saber tudo, conhecemo-la muito bem. É ouvindo-a e também lendo-a. Essa é a primeira exigência de um tradutor”, concretiza.

Em segundo lugar, “vem conhecer muito bem a outra língua, e o contexto em que a outra língua é produzida”.

Em entrevista à agência Lusa, diz que não traduz a sua própria obra, “em primeiro lugar”, porque a sua tradutora, Margaret Jull Costa, “é a melhor do mundo”, tendo já traduzido autores como José Saramago, Eça de Queiroz, Fernando Pessoa, Javier Marías e José Régio.

Por outro lado, não tem “distanciamento suficiente” em relação à sua poesia.

“No fundo, eu visto o poema com as roupas do meu país. Transformo o poema em algo que seja português. (…) No caso de eu passar a minha poesia para inglês, o que acontece é que o meu domínio da língua, de todas as nuances que existem na língua inglesa, não é total”.

Nos casos em que traduziu para inglês, fê-lo “com a Margaret”, como com Mário de Sá Carneiro, mas a sua própria obra é um limite que não ultrapassa.

Eu tenho com a minha própria poesia uma proximidade perigosa. Sinto que é perigoso eu estar a tentar traduzir. É a mesma coisa que pedir-me para analisar um poema meu. É muito difícil. Eu posso falar-lhe das circunstâncias do poema, porque é que o escrevi, como escrevi. Isso eu posso facilmente falar-lhe. Agora, analisar, como analisaria um poema de Emily Dickinson, é muito difícil. Isso eu deixo para os críticos”.

A autora confessa que já ficou desiludida com uma tradução para francês de “O excesso mais perfeito”, em que “quero um poema” foi transformado em “quero escrever um poema”, que foi justificado com “o velho argumento do clássico francês”, que é “não se pode dizer isso” naquela língua.

“Mas eu compreendo, cada língua tem os seus limites e a sua música”.

Ainda assim, considera que “as subversões, por vezes, na outra língua para a qual se traduz, têm de aparecer, podem é aparecer noutro sítio”.

E dá o exemplo do “Soneto 138” de Shakespeare, que traduziu, em que “ele brinca com o ‘lie’ de estar deitado e mentir”.

Para esse caso, a solução que encontrou, e que a deixou “feliz, às quatro da manhã, foi: ‘com ela me deleito, mentindo, e ela comigo,/ E, a mentir nossas faltas, em deleite existimos”.

“As línguas têm os seus limites, o que acontece com a poesia é que a poesia joga com esses limites. Mas há um limite que ela não pode ultrapassar, sob o risco de cair no ridículo ou na incompreensibilidade total”.