No final do ano passado, o músico Mark Lanegan lançou a sua segunda biografia, facto incomum num homem de 57 anos. Intitulada Devil in a Coma, não era uma biografia convencional: não se dedicava a narrar os eventos de toda uma vida, antes se concentrava no período de tempo em que Lanegan contraiu o vírus da Covid-19.

Alguns homens parecem fadados para a tragédia e Lanegan, que morreu esta terça-feira, 22 de fevereiro, aos 57 anos de idade, era um deles: ele não teve apenas Covid – esteve a morrer da doença. Desde o dia em que acordou completamente surdo, sofreu uma queda e partiu várias costelas, até ao momento em que conseguiu sair da cama do hospital, Lanegan passou por um coma induzido, teve um cateter enfiado no pénis e sofreu de alucinações – todos os dias, enquanto esteve nos cuidados intensivos, lhe perguntavam se sabia quem era e onde estava e todos os dias o seu estado mental era tal que respondia que estava no México a comprar drogas, ou a fazer panquecas, bêbedo, ao pequeno-almoço, num restaurante onde trabalhara – tudo memórias de juventude.

Mas se o tom de Devil in a Coma é inevitavelmente deprimente – embora com o tradicional humor negro de Lanegan – e condizente com o azar que sofreu, não é o mais que Sing Backwards and Weep, a sua primeira biografia, que escreveu após o incitamento do seu amigo Anthony Bourdain. Sing Backwards and Weep é uma biografia convencional, no sentido em que narra toda uma vida – mas essa vida é tão pejada de acidentes, desgraças, vícios, disfuncionalidade e culpa que ao lê-la temos a sensação de estarmos a assistir a um acidente no exato momento em que um carro embate contra uma árvore, o metal se encarquilha, ferros atravessam o condutor – e de alguma maneira ele sai disto vivo e o carro ainda anda (pelo menos mais uns quilómetros).

[“Nearly Lost You”, com os Screaming Trees, em 1992:]

Colaborador, numa segunda fase da sua carreira, de uma miríade de músicos, que incluem Layne Staley (dos Alice in Chains) e Mike McCready (dos Pearl Jam) nos Mad Season, de Greg Dulli (dos The Afghan Whigs) nos The Gutter Twins, de Isobel Campbell (ex-Belle and Sebastian), com quem lançou dois discos, os Dead Combo e os Queens of the Stone Age (a sua colaboração mais famosa entre muitas), Lanegan era acima de tudo conhecido pela sua voz cava e suja, própria de quem tinha vivido demasiado e havia sobrevivido para contar – embora essa sobrevivência soasse sempre precária.

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Era uma voz que criava no ouvinte a sensação – tantas vezes discutida no mundo do rock’n’roll – de autenticidade: o que Lanegan cantava parecia sempre verdade, porque não seria possível a ninguém cantar tanto horror daquela maneira sem realmente ter vivido o que cantava. O mais impressionante é que, sim, Lanegan viveu o que cantou.

A sua primeira aproximação à fama aconteceu a bordo dos Screaming Trees, que se pode qualificar como genericamente grunge, no sentido em que combinava punk e hard-rock, aplicando uma demão extra de eletricidade puída ao som. Mas o que realmente distinguia os Screaming Trees de serem mais uma banda de Seattle com um problema de indumentária era a voz de Lanegan, aquela voz.

Quando consideramos os eventos que o levaram a encabeçar os Screaming Trees, não admirava que a sua voz soasse assim: de acordo com Sing Backwards and Weep, aos 12 anos Lanegan já era um alcoólico que se dedicava a furtos, um jogador compulsivo e um viciado em pornografia. Estes traços não desapareceram de imediato, o que lhe permitiu ir criando novas entradas num cadastro que incluía vários tipos de assaltos, fraudes, posse de drogas e um sem número de vezes em que foi apanhado a beber, apesar de ser menor.

[em 2003, ao vivo vom os Queens of the Stone Age, em “Auto Pilot”:]

Lanegan tinha 21 anos quando, no início da década de 80, conheceu o guitarrista Gary Lee Conner e o baixista Van Conner, com quem viria a fundar os Screaming Trees – os Conner eram filhos do dono do videoclube em que Lanegan trabalhava e, digamos, havia uma certa diferença no tipo de vida que até então ele e os irmãos haviam levado. Talvez essa tenha sido a génese dos incontáveis problemas internos que a banda sofreu até à sua dissolução; Lanegan também não apreciava o controlo que o guitarrista Gary Lee tinha sobre a banda.

Em 1988, por altura de Invisible Lantern, Lanegan já descobrira a sua voz; Sweet Oblivion (1992) e Dust (1996) eram grandes discos que surgiram no exato instante em que os Nirvana e os Pearl Jam puseram aquele tipo do rock no topo das tabelas de vendas – o que valeu, por arrasto, muita atenção aos Screaming Trees. Lanegan tornou-se amigo de Cobain (que considerava um irmão mais novo, e com quem gravou um álbum de versões de Lead Belly que nunca foi editado), ao ponto de lhe comprar drogas às escondidas – desde o suicídio do líder dos Nirvana e até à  morte, Lanegan viveu com a culpa de não lhe ter atendido o telefone no dia em que Cobain se suicidou.

Por essa altura já Lanegan era um consumidor ávido de drogas – na sua biografia conta que começou a tomar heroína para fugir à dependência do álcool. O efeito foi devastador: Lanegan entregou-se por complete à heroína e Sing Backwards and Weep está pejado de histórias assustadoras de negócios de compra de heroína que correram mal, amizades e relações arruinadas pelo vício, e um estado de desagregação e decadência que durou décadas e décadas.

[em 2018 com os Dead Combo, no festival de Paredes de Coura, em “I Know, I Alone”:]

Só a intervenção de Courtney Love (a viúva de Kurt Cobain), que lhe pagou a reabilitação, o salvou. Lanegan, que começara “uma carreira a solo”, gravou então Scraps at Midnight, em que ficava claro que aquela voz dava para mais que um tipo a berrar numa banda de rock; aquela voz canalizava a história da folk e dos blues e todos os fantasmas que estes géneros comportam e que fazem match com os eventos da vida de Lanegan.

Começava aí a segunda vida da carreira musical de Lanegan, que se tornou colaborador assíduo nos Queens of the Stone Age, o que o tornou conhecido para uma nova geração de amantes do rock. Essa colaboração também lhe trouxe algum desafogo financeiro e a experiência incentivou-o a colaborar mais e mais (como veio a acontecer com os Dead Combo). Pelo meio acumulou amizades-rock, como o chef, escritor, melómano e apresentador de programas de culinária (que eram bem mais que isso) Anthony Bourdain, e casou pela segunda vez.

57 anos é uma idade muito jovem para alguém morrer, mesmo alguém do rock e que viveu tão intensamente como Lanegan – mas nesses 57 anos ele conseguiu ascender ao patamar das grandes vozes, ao estatuto de sobrevivente que só atribuíamos aos Johnny Cashs desta vida – e pelo meio comoveu uma quantidade enorme de pessoas. Tudo graças a uma garganta, uma das mais espantosas gargantas que o rock conheceu, ao ponto de quando essa garganta produzia som nós acreditávamos que o que ela dizia era a mais pura das verdades.

Até um destes dias, Mark.