“Queres fazer uma femme fatale?”, perguntou-lhe Jorge Silva Melo. A resposta de Rita Brütt foi positiva e imediata. Nessa altura ainda ninguém adivinhava que “Vida de Artistas” seria a última peça do encenador.
“O Jorge estava frágil, a recuperar de uma operação, mas sempre foi franco e honesto com todos. Enquanto foi possível, veio sempre trabalhar. A expectativa de todos nós era que melhorasse”, explica a atriz que interpreta Gilda, uma das personagens principais de “Vida de Artistas”. A partir do texto de Noël Coward, estreia-se no Teatro São Luiz, em Lisboa, esta quarta-feira, 23 de março, apenas nove dias após a morte de Jorge Silva Melo.
Manter a peça em cena, tal como estava previsto, é uma homenagem, mas não deixa de ser um sentimento agridoce por o encenador não ter chegado a ver o seu último projeto ganhar vida em palco. A voz de Rita Brütt treme, a atriz faz uma pausa para se recompor antes de continuar. “É muito complicado. Além de nosso mestre e chefe, o Jorge era nosso amigo. É muito triste perder um amigo.”
Mudamos o tom da conversa para que possamos continuar. A presença de Jorge Silva Melo sente-se em todos os detalhes de “Vida de Artistas”. Foi dele a escolha do texto e a construção da equipa, as indicações que deixou mantêm-se e estão agora nas mãos do encenador António Simão. “O trabalho estava lá, mas é sempre preciso um olhar exterior e o António Simão tem sido de uma enorme generosidade. Foi ouvindo e dando o seu feedback. Quando passamos da sala de ensaios para o palco há muitas decisões a tomar e ele assumiu-as.”
É precisamente no palco na Sala Luís Miguel Cintra que se definem os últimos detalhes a pouco mais de 48 horas da estreia desta produção dos Artistas Unidos, a companhia criada por Jorge Silva Melo em 1995. Do lado esquerdo está o cenário: uma parede bege escuro define os limites daquilo que mistura uma sala de estar e um estúdio de pintura, há um sofá amarelo, uma secretária, um banco redondo, um cavalete e pouco mais.
“Senhores atores, venham aqui se fazem favor”, diz António Simão enquanto se aproxima com o texto numa das mãos. “Rita, experimenta então agora só duas coisinhas.” Seguem-se alguns minutos de indicações. O elenco prepara-se para fazer um ensaio corrido, interpretando a peça do início ao fim. São cerca de duas horas. “Então, muita merda”, grita Simão antes de se instalar numa cadeira da plateia.
Desce o pano vermelho para subir de imediato uns segundos depois. São 16h17, que comece “Vida de Artistas”. Gilda recebe Ernest, um velho amigo e negociante de arte. Rapidamente ele percebe que alguma coisa a perturba e aos poucos, através deste diálogo, vamos sendo introduzidos ao tema da peça e às duas outras personagens importantes, Otto e Leo. Com Gilda formam um triângulo amoroso, um escândalo aos olhos da sociedade dos anos 30 (e dos anos 2020?), época em que se passa a ação e em que foi igualmente escrita a peça.
“Eu amo-te, tu amas-me. Eu amo o Otto, tu amas o Otto. O Otto ama-te, o Otto ama-me”, sintetiza Leo (Pedro Caeiro) depois de emergir do quarto (fora de cena), de sapatos na mão, ao ponderar com Gilda se a decisão de se envolverem na noite anterior foi ou não a correta.
Por esta altura, Gilda vive com Otto, embora não consiga imaginar-se presa num compromisso como o casamento. Mais tarde irá trocá-lo por Leo e depois decidirá que não faz falta a nenhum dos dois. “São os conflitos de uma mulher que ama demasiado”, analisa Rita Brütt. “Ela escolhe amar estes dois homens. Não se julga, mas luta contra o julgamento dos outros. Se ainda hoje é complicado, imaginemos nos anos 30. A sociedade nunca olhou para homens e mulheres da mesma forma. E continua a não olhar. Eu tenho 39 anos e, das primeiras vezes que comecei a ensaiar depois de ter tido a minha filha, perguntavam-me: ‘O que é que fizeste à tua criança?’ Tenho a certeza que não perguntariam o mesmo aos meus colegas homens.”
Rita Brütt diz estar “extraordinariamente calma e desejosa de estrear”. Essa segurança é palpável em palco. É ela o fio condutor que vai guiando este bailado de personagens e é também ela a sussurrar uma deixa quando é preciso. “Há uma coisa…”, sopra discretamente a Nuno Pardal (Otto) quando um silêncio inesperado toma conta da cena. O ator recorda-se de imediato do respetivo texto e a engrenagem volta a funcionar na perfeição.
O texto, traduzido por José Maria Vieira Mendes, é impactante, tem considerações certeiras aqui e ali (“o sucesso é bem mais perigoso do que o falhanço”) e sarcástico. “Todas as hormonas do meu corpo estão a fazer horas extraordinárias”, atira Gilda logo no início. De um estúdio decrépito em Paris para um apartamento em Londres com direito a empregada, saltando para uma penthouse em Nova Iorque — a ascensão e o sucesso não acabam com os problemas do triângulo principal, preso numa ligação que não tem propriamente descrição possível para quem vê de fora.
Gilda é muito mais do que a femme fatale que Jorge Silva Melo prometera e Rita Brütt dá-lhe a complexidade de uma mulher que luta contra todos os estereótipos onde querem encaixá-la. A construção da personagem foi um trabalho de equipa, garante a atriz.
“O Jorge sempre teve uma enorme atenção ao nosso trabalho. Dava-nos espaço para experimentar e só depois dava as indicações dele. Sempre nos sentimos muito ouvidos.”
Os reparos que farão a diferença na sua interpretação, esses, Rita Brütt guardará só para ela, mas há uma imagem que lhe ficou gravada que não se importa de partilhar. “Nos ensaios, quando o Jorge já estava muito cansado e a tomar medicação, às vezes parecia que estava a fazer uma pausa, de olhos fechados. Depois abria os olhos e dizia a coisa certeira. A verdade é que ele sabia mais do que todos nós, sabia mais a dormir do que nós acordados”.
“Vida de Artistas” estará em cena na Sala Luis Miguel Cintra do Teatro São Luiz entre 23 de março e 10 de abril. As sessões acontecem às 20 horas (de quarta-feira a sábado) e às 17h30 (no domingo). Os bilhetes custam entre 12€ e 15€. Estão disponíveis nas bilheteiras online ou no local.