Lá dentro, Harry Styles está a mais de uma hora de subir ao palco. No exterior, há quem desespere por um bilhete para o concerto há muito esgotado. Inicialmente marcado para maio de 2020, o último espetáculo da Love Tour prometia uma estreia em grande do músico inglês, que convocou milhares de fãs de plumas ao pescoço, brilhantes na cara, corações de papel na mão e bandeiras coloridas. Naquele momento, do interior da Altice Arena chegam vagas de gritos para os Wolf Alice, que abriram o palco, mas nas imediações do recinto as lágrimas escorrem por umas quantas caras desiludidas. São fãs, sem companhia ou ao lado dos pais (há umas quantas gerações diferentes neste concerto), que acabam de descobrir que os bilhetes que tinham “afinal eram falsos”.

Um pai brasileiro lamenta os 1500 euros que pagou pelo que julgava ser a entrada para as duas filhas. “Comprámos online há vários meses mas, pelo que percebemos agora, o bilhete era duplicado”, diz-nos enquanto as duas miúdas tentam um rasgo de sorte no telemóvel, já com a maquilhagem e a esperança a desfazer-se. Não é para menos: Harry Styles é um dos maiores fenómenos pop do momento e isso é bem visível por todo o Parque das Nações, em Lisboa. “Balcão dois é por aqui”, diz um dos seguranças ao megafone. “Acelerem o passo para ser mais rápido.”

Há cartazes em diferentes línguas a anunciar “compro bilhetes”, correrias desenfreadas na direção das bilheteiras, no momento em que se anunciam ingressos de última hora. Uma fila de gente pouco esperançada forma-se em minutos. Batem-se palmas para os afortunados da frente, que descem as escadas do pavilhão exibindo o precioso papel para o concerto do rapaz que se mostrou ao mundo no “X Factor”, ganhou fama com os One Direction e hoje ostenta uma carreira sólida, com três discos que haveria de fazer desfilar daí a pouco tempo, durante perto de duas horas de espectáculo.

“Vocês têm um bilhete?”, pergunta-nos outro pai, inglês, disponível para gastar 1500 euros para a filha. Outro jovem, indonésio, conta-nos que veio à zona da antiga Expo, em Lisboa, tentar a sua sorte. “No caminho de táxi tivemos oportunidade de comprar por 320€, mas decidimos não arriscar. Agora nem por 500 estamos a conseguir”. É um misto de euforia, confusão e tristeza que, para Sandra Gomes, se transformou numa alegria de levar às lágrimas: a filha de 16 anos acabara de comprar um dos últimos ingressos, por apenas 65 euros, na bilheteira.

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Uns dias baladeiro que derrete corações, outros o rei da festa: Harry Styles está entre nós

Já no interior do recinto, minutos antes de subir ao palco, as colunas do pavilhão debitam a “Bohemian Rhapsody”, dos Queen, cujo icónico vocalista já muitos comparam ao artista desta noite. Rapidamente se percebe que o sistema de som não acompanha os decibéis do público, entoando a letra de Freddie Mercury em uníssono. Mas é quando as luzes se apagam que o público é levado a uma histeria que seria constante durante o espectáculo. Vestido com uma T-shirt branca com um urso de brilhantes estampado no peito, ei-lo, Harry, o cantor, a estrela, o príncipe, o ídolo, o enigma. Entra aos saltos, perante a multidão que jura estar preparada para um noite única nas suas vidas.

O palco é simples, colorido, e a banda coesa: duas mulheres – na bateria e no baixo – um grande percussionista, um teclista e um guitarrista lançam as primeiras notas de “Music For a Sushi Restaurant”. Milhares de luzinhas acendem-se de imediato nos telemóveis, que foram uma constante ao longo do espectáculo. Toda a gente sabe a letra de cor, todos acompanham o artista, que ergue o microfone em punho para a multidão, deixando muitas frases a meio para que os fãs as completassem. É a partilha direta possível: apesar da distância própria de uma estrela global face ao resto da humanidade, o menino-feito-homem Styles procura os momentos de sintonia em que todos parecem estar ao mesmo nível. É a melhor recompensa para a entrega dos milhares que ali prestam adoração; e é a melhor forma de continuar a ser de carne e osso, apesar do sucesso.

Não há uma cadeira livre: as bancadas e a plateia estão cheias para receber Harry e percebe-se que o próprio  se sente em casa para desfilar êxitos dos seus três discos editados, após o hiato anunciado pelos One Direction. Seguem-se “Golden” e “Adore You”, do álbum “Fine Line”.  Um corredor pelo meio do público permite ao artista celebrar a canção “Daylight”, do novo Harry’s House, num dos momentos mais intimistas, ladeado pela baixista Elin Sandberg e a baterista Sarah Jones nos coros. É o intimismo concretizável quando estamos no meio de quase 20 mil pessoas, mas é também a prova de que as multidões não transformam o cantor num ídolo vindo de outro planeta.

A cada canção terminada há fãs que se abraçam, mães, pais, filhos, filhas, amizades, gente estranha que chora para uma selfie, cartazes que se erguem no ar. “Help to Propose”, lê-se num destes pedaços de papel improvisados a marcador e que resultou num dos momentos mais divertidos da noite, que acabaria com o princípe Harry a apadrinhar o casamento de um casal de fãs portugueses. O alinhamento vai percorrendo praticamente os três discos do jovem artista, de 28 anos. Harry vai alternando a postura entre sorrisos e uma timidez contagiante, mais evidente quando agarra na guitarra acústica para interpretar sozinho “Fine Line”, doce e melancólica, de uma honestidade artística à prova da pop mais plástica.

Rapidamente o concerto vai caminhando para o fim, com Styles a exibir um cachecol colorido, símbolo da diversidade do seu próprio público, carregado de lantejoulas, brilhantes, sem exibir fronteiras ou ideologias de género – um tema tantas vezes abordado nas centenas de entrevistas que tem tem dado. Viajando pelos universos da pop e do rock, sempre de forma consistente, e perante um público que não desarmou, Harry deixa pendurada uma bandeira da Ucrânia no tripé de microfone, enquanto regressa para a banda pelo corredor aberto no meio do público.

Quandos as luzes finalmente se apagam e a banda desaparece, com Harry de mão ao peito, repetindo de forma incessante “thak you, thank you, thank you”, o público grita de forma estridente pelo seu nome. É o momento de glória: o regresso para um encore de cinco canções que traria de volta ao palco Ellie Rowsell, vocalista de Wolf Alice, a banda que teve honras de abertura para aquele que será provavelmente o maior símbolo da pop da atualidade.

“Sign of the Times”, “Watermelon Sugar”, “No Hard Feelings”, “As It Was” e “Kiwi” formaram o final perfeito de uma noite que o cliché anunciava “inesquecível para milhares de jovens”, mas que foi sobretudo o testemunho óbvio daquilo que já suspeitávamos: Harry Styles, nascido de uma boy band que seguiu o método de todas as que a antecederam, é senhor de um talento raro, é mestre de cerimónias, inteligentíssimo em todas as escolhas que faz e, acima de tudo, brilhante cantor para refrões que constrói ao detalhe. Tudo o resto chega-lhe naturalmente (até um pastel de nata, iguaria à qual dedicou juras de amor a partir do palco). Mesmo que 20 mil pessoas não pareçam coisa natural. Para Harry são apenas parte de mais um domingo em família.