América do Norte, 1890. Tem tanto a dizer sobre quem somos e onde estamos. Ou pelo menos foi isto que Hugo Blick (“The Honorable Womans”, “Black Earth Rising” e “The Shadow Line”) imaginou, criando um western com uma mulher – a inglesa do título – à procura de vingança e um índio Pawnee que quer recuperar a terra a que tem direito por ter lutado ao lado da cavalaria. Os dois combinam, percebe-se de imediato; a jornada em que embarcam nem tanto. Mas esta disfuncionalidade importa menos. a terra sem lei que se encontra na caminhada que fazem juntos conta tudo o que se precisa de saber. “The English” aborda poder e conquista com voz ativa, cabe a quem vê processar isso para o seu lado, para o presente.
Os seis episódios de “The English” já estão disponíveis na HBO Max. Cada um começa com um conflito que, apesar de não se resolver no próprio capítulo, torna-se essencial para fazer o mundo crescer. No primeiro, por exemplo, introduz-se Eli Whipp (Chaske Spencer), o índio, e numa admirável sucessão de diálogos fica-se a saber tudo o que é preciso sobre a personagem: ficou sem o que tinha, quer o que é dele por direito, a terra prometida. Em alguns dos outros viaja-se até ao Wyoming, para construir o imaginário do destino de, pelo menos, uma das personagens, a inglesa Cornelia Locke (Emily Blunt), uma aristocrata que está a atravessar o continente para vingar a morte do filho. Sabe-se que há um responsável, um homem mau, e aqueles breves minutos no Wyoming contextualizam, idealizam o destino para o espectador.
[o trailer de “The English”:]
Cria-se a ideia de que irá ser violento. Qual a novidade aí? Tudo o que acontece em “The English” é violento. A terra assim o permite, a tal obriga. 1890, todas as tribos índias queixam-se que as terras lhes foram retiradas. Alguns colonos reclamam terras como suas, compradas ou conquistadas. Outros alegam que a terra não é das pessoas, mas de Deus, e se ele as colocou ali é porque as quer ali. Qualquer argumento vale para justificar a presença naquela terra inóspita, que se atravessa a cavalo, ninguém à vista, e onde cada encontro é uma promessa de morte quase certa. O perigo permanente de “The English” insiste na lembrança de como a conquista, a colonização, é um processo de perigos e más justificações.
Quase todas as personagens que Cornelia e Eli encontram têm uma justificação para ali estar (o “estar” enquanto “ocupar” e “colonizar”). À exceção de Cornelia, os forasteiros expressam-se com um sentimento de direito. Talvez por isso, Eli acredite na história de Cornelia. As circunstâncias em que se conhecem desafiam a lógica do mundo em que se vive. Assimilá-la torna-se, então, essencial para desfrutar de “The English na plenitude. Feitas as introduções a Eli no primeiro episódio, segue-se depois para Cornelia, cuja voz já se conhece da introdução do episódio. Cornelia está nas mãos do dono de um hotel (Ciarán Hinds), em nenhures. Tem tanto de inacabado como de armadilha. E armadilha será, tanto para ela, como foi para Eli: capturado na noite passada, espancado e pendurado no exterior, como se fosse um saco de pancada. O dono do hotel quer violar e roubar Cornelia. E matá-la, algo que acontece a todo o mundo em “The English”, mesmo quando não se vê: a morte, a morte violenta, é permanente. Cornelia viaja com muito dinheiro. Está “a pedi-las” naquele mundo: uma ideia que a própria aprenderá a ultrapassar ao longo da série.
O hotel faz pouco sentido. À volta só há deserto. Aliás, um dos detalhes fascinantes que Hugo Blick impõe é esta permanente ideia de “tudo por construir”. O pouco que existe é um marco na paisagem, algo que se vê no horizonte. Tem uma função de paragem, mas também de etapa. Esse carácter funcional e pragmático passa depois para a estética, para a narrativa. O objetivo é dar corpo ao paradoxo que opõe duas ideias: a de que a América do Norte era uma terra de ninguém; a mesma América do Norte que era a terra dos índios. A mensagem, contudo, importa. Ao fazer isso, Blick transmite a ideia de que a terra estava ali para ser ocupada e de que há todo um país para criar, um país que não existe. Existe no papel, mas não na terra: por outras palavras, as regras criam-se no momento.
A terra existe ou não existe? A terra é ocupada ou não? A terra é dos índios ou é de alguém (até de Deus)? Não há meio, só lugar aos extremos e à violência que é exigida para se chegar a esses extremos. A paisagem serve de metáfora para os Estados Unidos de hoje e para a replicação do mundo global, mais de extremos, de brancos e pretos, sem procurar cinzentos ou – mas isso já é pedir muito – todas as outras cores. Daí que o título “The English” pese tanto: Cornelia não quer ser uma inglesa numa terra estranha, quer portar-se como alguém que quer, que tem de viver naquela terra.
“The English” torna a assimilação disto gradual e saudável. Sem forçar ideias, princípios ou conceitos, deixa o espectador apreciar e fazer juízo próprio, com a paisagem a contar por si só uma história. Acima de tudo, esta é uma série que quer ser só televisão. Grande televisão. E Hugo Blick é ótimo nisso.