Ah, les touristes… Pois é, os turistas… Em Paris, há tantos que já nos habituámos, mas em Lisbonne a situação ainda é recente e faz diferença na vida dos habitantes, até porque as ruas são estreitas, os passeios pequenos e os turistas têm um ar feliz e bem disposto, que só deprime mais os deprimidos nacionais. Ainda por cima, há os nómadas digitais, os expatriados e os seus amigos, que ocupam a cidade e enchem os cafés, as pastelarias e os restaurantes dos portugueses, com a sua euforia e as suas kombuchas. Definitivamente, as coisas não parecem correr de feição a quem vive e trabalha na capital europeia mais ocidental. Bem sei, la vie change, as coisas mudam e evoluem, ainda bem, pas de problème, mas por vezes o que apetece é o aconchego das coisas de antigamente. Pois bem, se forem como eu tenho boas notícias porque num destes dias, no Relento, recentemente reaberto, não havia desses dramas. Au contraire.

Indo na direção de Cascais, Algés é uma localidade triste, com velhinhos, pombos e automóveis por todo o lado. Nestes dias alberga a mais portuguesa das marisqueiras da região de Lisboa. Ultimamente tem-me acontecido estar em cervejarias marisqueiras renovadas, a sensação tem sido agradável — porque a cidade oferece mais qualidade do tipo internacional — mas tem-me faltado qualquer coisa, o tal aconchego das coisas de antigamente de que falei antes e que encontrei no Relento, reaberto em princípio de outubro, sem felizmente ter renovado nada, pelo menos não a ponto de ter estragado seja o que for.

Sei, porque tenho amigos que mo dizem, que o Relento foi em tempos um restaurante típico português popular, com um grande balcão e santolas de loiça a decorar, mesas pequeninas, cadeiras desconfortáveis, decorado com beatas e guardanapos amarrotados espalhados pelo chão. Bebiam-se cervejas, comiam-se tremoços, pregos e nos primeiros dias do mês, enquanto o ordenado ainda existia, comia-se algum marisco. Há muitos anos que não é assim, expandiu-se e subiu de nível. Quem não conhece, depois da porta, passamos um balcão de serviço e perdemos a vista numa sala longa, um grande retângulo sem paredes ou luz natural, bem iluminado, com mesas dispostas de maneira a receber grandes grupos, ou separáveis para um qualquer petit comitée. À entrada, um aviso numa tabuleta pede que aguardemos para ser sentados. À medida que vão chegando, vários clientes ignoram-na e aqueles que esperam fazem figura de parvo. É uma das grandes tradições portuguesas, bem sei, esta de fazer de parvo quem cumpre as normas, pelo que nós (que desta feita tínhamos mesa marcada), decidimos afirmar o poder das mulheres e refilámos ruidosamente. Resultou, demonstrando assim que quem chora, mama, outras das grandes tradições portuguesas. Há um chico esperto que habita em quem se esqueceu de marcar de mesa, mas se fizerem barulho no Relento ficará especado a olhar para uma santola enorme, feita de crochê por Joana Vasconcelos que está pendurada numa parede.

O Relento continua felizmente a receber-nos com o célebre tabuleiro de salgados. E que ótimos que são, estaladiços, bem fritos, a massa sabe a memórias boas, senti-me a engordar um quilo por cada dentada no rissol e valeu a pena (1,90 cada). Pior é que daí em diante tenhamos de lutar pela atenção dos empregados, tal como os apanhadores de percebes nas Berlengas lutam contra o mar e as rochas. Chamar a atenção do empregado talvez faça parte intrínseca de se estar numa marisqueira/cervejaria portuguesa e se nenhuma de nós era habitual, como somos vaporosas, tivemos direito a ser tratadas por meninas e princesas e a um atendimento expedito. Do mal o menos.

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E lá chegou a lista, duas páginas dentro de umas proteções de plástico. A boa nova é que não é longa como um romance de Victor Hugo e é de uma simplicidade entusiasmante. Ainda bem. No Relento, ninguém vai chercher midi à quatorze heures, ou seja, ninguém vai complicar, resolver o problema da sustentabilidade da segurança social ou da seca no Alentejo. Vamos comer e petiscar e foi o que fizemos em boa hora.

Começamos por pedir dois pratos de pão torrado (1,90). Cadelinhas (20) não havia, fomos numas ameijoas (20), sucumbimos a uns percebes gigantes, maravilhosos (120 euros kg), que chegaram a ferver, acabados de cozer e à gamba nacional (70 euros/ kg), com o sal no ponto. Cerveja de pressão primorosa ia chegando à mesa a acompanhar o festim.

À medida que o restaurante ia enchendo, o nível de ruído sobe tanto que ou vamos na onda ou enlouquecemos. O lugar é uma cantina de habituais, famílias, casais e grupos de amigos que chegam depois de um jogo de futebol ou, como nós, que viemos discutir o final de “House of the Dragon” e o que a segunda temporada pode trazer. Turistas é que não há e também não se percebe como conseguiriam chamar a atenção dos empregados. Não se vem ao Relento resolver des affaires du coeur ou quaisquer outros affaires, como disse, mas convém ter algum expediente.

O bife especial e o bife da vazia custam uns honestos 14,50, mas estávamos tão cheias que no fim comemos somente um prego de vitela na frigideira, com molho à Relento, por 9,50. O pão para absorver aquele molho de mostarda, bolas grandes, cozidas em forno de lenha, chegaram num cestinho de palha. Parfait, que não há outra palavra para definir o conjunto.

Com o café, e depois de muita insistência do empregado, dividimos um pudin flan caseiro (dos que vem em latinha de alumínio, a 3 euros) razoável. A fila de gente à porta à espera de mesa intimidou-nos e fomos embora depois de pagar.

Li um dia que a primeira referência conhecida às cerejeiras em flor no Japão consta do mais antigo texto daquele cultura – o Kojiki. Os japoneses tentavam distanciar-se da China e da sua influência e as cerejeiras tornaram-se um símbolo da sua identidade (contra as ameixoeiras chinesas). Em poucos anos, olhar as cerejeiras em flor tornou-se um ritual e a previsão com os picos do florir era tema de baladas e poemas. Não sei se há vestígios de marisco e cerveja nos textos ou poemas portugueses antigos (ou nos modernos, já agora), parece-me sim que devia haver. Há qualquer coisa de identidade lusitana no camarão, na santola e na ameijoa neste país com tantos quilómetros de costa e uma zona marítima exclusiva enorme. Quem terá criado as marisqueiras, as cantinas de frutas do mar, com toalhas de papel, barulho e convívio? Foi alguém inteligente, de certeza absoluta, os historiadores só têm de o descobrir para lhe fazermos uma estátua.

O Relento de Algés voltou em força. Felizmente, os seus proprietários esqueceram-se de o fazer moderno, como tantos sítios onde tenho ido recentemente. Merci bon dieu. Fecha às quartas-feiras e nos outros dias está aberto das 12h às 23h. Fica num dos extremos da Av. Combatentes da Grande Guerra e aceita reservas pelo telefone. Os preços são válidos até ao fim deste 2022 (é o que consta na lista).

Patrícia Le Mans estudou Filosofia e Moda. Gosta de queijo, champagne e de ameîjoas à Bulhão Pato. Tem mãe portuguesa, pai francês, vai flutuando entre Lisbonne e Paris e escrevendo para o Experimentador Implacável.