790kWh poupados com a
i

A opção Dark Mode permite-lhe poupar até 30% de bateria.

Reduza a sua pegada ecológica.
Saiba mais

"Os Filhos de Ramsès": viagem a um verdadeiro bairro de Paris

Este artigo tem mais de 1 ano

Vencedor do Grande Prémio do Júri no LEFFEST, “Os Filhos de Ramsès” mostra as dinâmicas de um bairro de Paris a partir de um vidente e das suas mentiras. Entrevistámos o realizador, Clément Cogitore.

"No Karim [Leklou] reconheci a personagem e o que faltava", confessa Clément Cogitore sobre o ator que protagoniza o filme
i

"No Karim [Leklou] reconheci a personagem e o que faltava", confessa Clément Cogitore sobre o ator que protagoniza o filme

"No Karim [Leklou] reconheci a personagem e o que faltava", confessa Clément Cogitore sobre o ator que protagoniza o filme

O início é solene. Uma sala com muita gente à espera e uma linha de diálogo bastam para entender que temos de esperar muito. Sem sinopse, não sabemos ao que vamos, quando damos conta estamos metidos numa sala com um medium. Ramsès (Karim Leklou) surge com grande credulidade, vamos na sua mentira, acreditamos que está a fazer qualquer coisa com o além. Não tanto pelo que faz, mas pelo rosto, parece alguém incapaz de mentir. Não demorará muito para descobrirmos que é um mentiroso, um manipulador, e que faz tudo parte de um ótimo esquema.

Clément Cogitore usa-o como porta para o bairro onde viveu grande parte da sua vida adulta, o Goutte d’or em Paris. Ramsès existe como veículo para sermos introduzidos a um bairro tenso, com diversas dinâmicas, por onde vagueiam uns miúdos incontroláveis. A morte de um deles transforma o filme e Ramsès entra num percurso de medo e de dúvida, enquanto o realizador transforma o filme: deixa de ser sobre um manipulador e passa a ser sobre uns miúdos selvagens, sem regras, que vivem no meio de nós.

Não é tanto o medo, a demonização inicial, que choca ou que, mais tarde, cria alguma empatia. Antes, os seus modos selvagens, sem lei, sem conduta e sem qualquer resposta da sociedade: nunca se sente que a sociedade os tenha abandonado, apenas escolheram viver assim. E, por isso, comportam-se com outros códigos ou com ausência de códigos. São inspirados numa história verdadeira e apesar de serem as mentiras de Ramsès que convidam, são “Os Filhos de Ramsès” que nos fazem ficar até ao fim.

O realizador francês tem uma carreira algo discreta, que parece estar a ganhar outra visibilidade com este Clément Cogitore. As duas longas-metragens anteriores são bem diferentes destas, “Ni le ciel ni la terre” (2015), em volta de um soldado no Afeganistão que se porta de forma errática e “Braguino” (2017), documentário filmado numa floresta na Sibéria. Em “Os Filhos de Ramsès” joga em casa, Paris, num bairro que conhece bem. No ano passado venceu o Grande Prémio do Júri no Lisbon & Estoril Film Festival.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

[o trailer de “Os Filhos de Ramsès”:]

O Karim Leklou tem um rosto perfeito para o papel. Onde o descobriu?
Foi no processo normal de casting. Quando escrevi o argumento não tinha ninguém em mente, queria deixar isso em aberto. A minha diretora de casting, a Tatiana Vialle, um dia conheceu-o, gravou um vídeo e enviou-me, sem qualquer comentário. Vi e soube logo que era ele. Nessa altura também percebi o que estava a faltar na personagem, que era algo que não conseguia solucionar no argumento, estava com dificuldades em encontrar formas de tornar a personagem mais complexa, empática. No Karim reconheci a personagem e o que faltava.

O que era?
Queria um protagonista difícil de julgar, que é manipulador, mentiroso. E eu estava preso a um personagem muito conceptual, duro, duro no sentido intelectual, era muito calculista. O Karim transmite algo mais, emoções… há uma bondade, melancolia, que me ajudou a conceber a personagem com mais camadas.

O filme passa-se no Goutte d’or, que é também o título original do filme. O que o levou a esse bairro em Paris?
Não sou de Paris, sou uma pessoa do interior. Quando cheguei cá, em adulto, fui viver com um amigo para esse bairro. Foi a minha porta de entrada para Paris e fiquei espantado pela personalidade, pela onda. Mas não é um bairro fácil de se viver, há muita tensão. Desde então que fiquei por aqui, no bairro ou nas proximidades, como agora. A saída da estação de metro, que se vê no filme, com muita gente a dar papéis com promoção de videntes, é muito conhecida em Paris: um parisiense vê aquela imagem e sabe logo onde é. É muito famosa por isso.

Essa imagem é forte porque depois percebe-se que há uma mentalidade de gangue, ou melhor, de gangues. É mesmo assim?
Não, é só o sítio onde apanhas papéis, basicamente. Alguns são do bairro, outros não. Mas passas por ali e apanhas 1, 2, 10 papéis desses. Os gangues, as rivalidades, são uma metáfora para outro tipo de problemas, traficantes. Decidi pegar na coisa não pela droga, mas por crença. Alguns deles são mais mentirosos, falsos, mas estão dentro da mesma economia, na mesma área profissional.

Mesmo sendo uma metáfora, funciona como ideia motora do filme. Poderiam ser gangues, porque está tudo bem retratado. Os esquemas que os mediums praticam também estão muito bem elaborados. Contactou-os para descobrir como faziam?
Há partes do filme que estão bem documentadas, como o que acontece com os miúdos: tirando o rapaz que é morto, tudo o resto é verdade. Quando comecei a escrever, procurei documentar-me sobre estas figuras mas… a maior parte deles não são bons. Estão a mentir de forma tão óbvia que acaba por não ser interessante. Queria que as pessoas acreditassem no Ramsès e que não gozassem com ele.

O ator Karim Leklou e o realizador Clement Cogitore durante a rodagem de "Os Filhos de Ramsès"

Daí ter perguntado pelo Karim, ele veste bem a pele de mentiroso, é uma mentira tão boa e elaborada por alguém com um rosto de cordeiro.
Exato. Mas os que vi não era bons, e eu queria uma personagem que fizesse bem o trabalho. Em alguns jornais franceses encontram-se anúncios de gente que traz de volta pessoas amadas, mas que também encontram uma solução para a Playstation estragada. Prometem coisas absurdas. E não queria que o filme fosse nessa direção. Queria uma relação forte, concentrada na voz dos mortos e na crença. Mas não encontrei isso quando fiz pesquisa, isto é, elementos que servissem a personagem. Por isso, pensei na melhor forma em que ele poderia trabalhar naqueles esquemas, em Paris. Como é que faria? E inventei aquela situação. A manipulação não vem da realidade. Bom, se calhar alguém faz isso, mas não conheço.

O processo está bem documentado. Somos logo introduzidos ao tipo na sala de espera, que diz estar ali há horas…
Têm de fazer as pessoas esperar, fazer com que estejam no telefone. É assim que conseguem toda a informação. Esse protocolo é todo parte de um processo.

Há pouco falou no miúdos do bairro. O que quis dizer com isso de “estar bem documentado”?
Os miúdos são inspirados numa história específica de miúdos que vieram de Marrocos, que viviam nas ruas de Tânger e acabaram em Paris, num parque infantil de Goutte d’or, nos verões de 2017 e 2018. Era um grupo sem qualquer conexão a alguém, usavam nomes falsos e eram muito violentos. Foi uma tragédia e um problema enorme. Ninguém conseguia relacionar-se com eles, dialogar ou começar uma conversa para os ajudar, porque eles já estavam completamente desligados quando chegaram. Não foi o bairro que os fez violentos. Tinham problemas com toda a gente, a polícia não conseguia fazer nada, nem as associações, nem instituições que ajudam pessoas violentas. Até os traficantes tentaram trabalhar com eles no negócio da droga e não deu. Eram violentos com toda a gente. Por exemplo, quando eles vão apartamento do Ramsès e se apropriam das coisas dele, usam o frigorífico, isso aconteceu mesmo. Entravam nas casas, pelas janelas, e usavam a casa das pessoas. A única coisa que não é verdade é a morte do miúdo. Receava-se que isso acontecesse, mas felizmente, nenhum deles morreu.

Essa cena no apartamento dele é muito selvagem, porque agem como se não estivessem a roubar. Parece natural.
Sim, baseei-me em testemunhos de pessoas. Aquilo era absurdo, porque entravam a faziam a vida normal. Houve casos de violentos, de miúdos que entravam e eram violentos, mas também há testemunhos radicalmente diferentes.

Só estavam lá no verão?
Sim, chegavam à Europa por camiões vindos de Marrocos. Depois apanhava comboios sem bilhetes e passavam umas semanas em Paris. Depois desapareciam, alguns foram encontradas na Suécia.

Porque paravam no Goutte d’or?
Ninguém sabe ao certo, mas suspeita-se que é por haver já uma comunidade marroquina. Só que eles também não se relacionavam com os marroquinos, não havia qualquer ligação. Nem mesmo com os criminosos. Era bizarro.

Começa por demonizá-los, mas depois humaniza-os ao longo do filme.
Sim, queria criar estereótipos no início. Porque se ouvia falar neles na televisão, mas ninguém contou a história. Resolvi então pegar nos estereótipos das imagens, as imagens chocantes, agressivas, e partir daí para dar a conhecer as personagens. Colocar o espectador mais próximo deles e das suas histórias.

Assine por 19,74€

Não é só para chegar ao fim deste artigo:

  • Leitura sem limites, em qualquer dispositivo
  • Menos publicidade
  • Desconto na Academia Observador
  • Desconto na revista best-of
  • Newsletter exclusiva
  • Conversas com jornalistas exclusivas
  • Oferta de artigos
  • Participação nos comentários

Apoie agora o jornalismo independente

Ver planos

Oferta limitada

Apoio ao cliente | Já é assinante? Faça logout e inicie sessão na conta com a qual tem uma assinatura

Ofereça este artigo a um amigo

Enquanto assinante, tem para partilhar este mês.

A enviar artigo...

Artigo oferecido com sucesso

Ainda tem para partilhar este mês.

O seu amigo vai receber, nos próximos minutos, um e-mail com uma ligação para ler este artigo gratuitamente.

Ofereça artigos por mês ao ser assinante do Observador

Partilhe os seus artigos preferidos com os seus amigos.
Quem recebe só precisa de iniciar a sessão na conta Observador e poderá ler o artigo, mesmo que não seja assinante.

Este artigo foi-lhe oferecido pelo nosso assinante . Assine o Observador hoje, e tenha acesso ilimitado a todo o nosso conteúdo. Veja aqui as suas opções.

Atingiu o limite de artigos que pode oferecer

Já ofereceu artigos este mês.
A partir de 1 de poderá oferecer mais artigos aos seus amigos.

Aconteceu um erro

Por favor tente mais tarde.

Atenção

Para ler este artigo grátis, registe-se gratuitamente no Observador com o mesmo email com o qual recebeu esta oferta.

Caso já tenha uma conta, faça login aqui.

Assine por 19,74€

Apoie o jornalismo independente

Assinar agora