A série chega com o selo da A24, a produtora cinematográfica do momento que completou uma década no passado ano e rapidamente se tornou a casa dos projetos independentes de maior sucesso, culminando com Everything Everywhere All At Once, que ajudou a A24 a tornar-se o primeiro estúdio a vencer os seis Óscars principais (Filme, Realizador e as quatro de interpretação) no mesmo ano – Brandon Fraser com The Whale completou o feito depois dos cinco para o filme dos The Daniels. Ao todo, a produtora soma já 49 nomeações aos prémios da Academia e 16 estatuetas douradas, incluindo dois de Melhor Filme (o outro, Moonlight em 2017). Expandindo mais recentemente para a televisão, desenvolveram já vários títulos de sucesso como Euphoria, Irma Veep, Ramy e, agora, este Beef.

Os primeiros momentos do episódio inicial mostram o evento que irá despoletar toda a ação que acompanhamos ao longo dos dez episódios de trinta e poucos minutos – Danny (Steve Yeun), após uma infrutífera tentativa de devolver uns grelhadores numa loja, frustrado e distraído, quase embate o carro ao sair no estacionamento no veículo que ali passava, que buzina ferozmente para demonstrar o seu descontentamento. O que poderia ser uma situação mundana ou o início de uma comédia romântica de domingo à tarde começa a escalar (palavra-chave desta série) numa troca de insultos, gritos e manguitos e posteriormente numa autêntica perseguição automóvel pelos subúrbios de Los Angeles (menos ao estilo Fast and Furious e mais naquelas fantasias que todos já tivemos no IC-19 de ir pedir satisfações ao motorista que nos cortou a passagem sem piscas nem um obrigado, sequer).

[O trailer de Beef]

Assim se inicia a grande rivalidade entre Danny e Amy (Ali Wong). Sem nenhum aceitar dar a chamada “parte fraca” e deixar o incidente morrer, os dois entram numa série de picardias – inicialmente algo juvenis como urinar a casa de banho de um ou deixar críticas negativas nas redes sociais do negócio do outro e procedendo de maneira por vezes absurdista e com escala e número de envolvidos cada vez maior. Ainda assim, o coração de Beef não é tanto as ações vingativas que vão praticando mas sim uma reflexão mais profunda sobre a natureza humana e a sua tendência para o abismo.

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Com grandes interpretações dos seus dois protagonistas – a comediante de stand up Ali Wong e Steve Yeun, que foi de queridinho dos fãs em The Walking Dead para candidato ao Óscar por Minari, mesmo as decisões mais violentas e excessivas das suas personagens passam por compreensivas aos nossos olhos, revendo neles a nossa própria mesquinhez que por vezes caracteriza a espécie. A certa altura, Danny grita “Porque é que me fizeste fazer isto?!”, como se o livre arbítrio fosse um conceito meramente teórico e as suas ações fossem apenas reações causais ao que lhe tinha acontecido, descartando-se de qualquer culpa moral pela situação em que se encontra.

As personagens principais, diametralmente diferentes em quase todos os aspetos – género, classe social e profissional, acabam por ser muito mais complementares do que poderiam imaginar. Ela uma empresária de sucesso, casada e com uma filha, ele um homem que vive entre biscates e esquemas na casa com o irmão mais novo mas ambos frustrados e ansiosos com as suas vidas e que encontram no outro, e na vingança, um escape.

É muito curiosa e interessante a decisão narrativa de colocar os dois protagonistas relativamente poucas vezes na mesma cena, tornando esses momentos de confronto direto verdadeiramente mais tensos pela sua raridade. Permite também dar a conhecer melhor as personagens secundárias, todas elas bem desenvolvidas, sobretudo o irmão (Young Mazino) e primo de Danny (curiosamente interpretado pelo artista plástico David Choe, que também ilustra as fascinantes pinturas que acompanham o título de cada episódio) bem como o marido de Amy, George (Joseph Lee).

Beef foi criada por Lee Sung Jin, nascido na Coreia do Sul, tal como a maioria dos intervenientes da narrativa mas já um veterano da televisão americana, com séries como It’s Always Sunny in Philadelphia, Silicon Valley e Dave no seu currículo de guionista e que está a adaptar a banda desenhada da Marvel Thunderbolts para o cinema, com estreia prevista para o próximo ano e com realização de Jake Schreier, que dirigiu vários episódios de Beef.

Não spoilarei (verbo que deve estar em vias de ser oficialmente adicionado do dicionário) as várias surpresas que a série nos reserva nos seus caminhos altamente tortuosos de voltas e reviravoltas físicas e emocionais, mas Beef tem os ingredientes para fazer parte da conversa da chamada época de prémios, quando Globos de Ouro, Emmys e demais galardões são distribuídos. Ainda assim, os dez episódios distribuídos por quase seis horas talvez fossem melhor servidos numa dose mais curta, sentindo que talvez seis ou sete episódios da mesma duração fossem suficientes para contar esta boa história de vingança.