Um professor atribui um trabalho: “Expliquem-me o que foram os Wham!”. O Aluno A vai à Wikipedia, faz copy/paste e acrescenta um “todavia” e “além disso” aqui e ali para mostrar o esforço básico. Já o Aluno B vai ler todas as entrevistas, ver vídeos antigos, falar com contemporâneos da banda, pensar como pode apresentar o fenómeno a alguém que nunca ouviu falar dele. Vai escrever com paixão e contagiar da mesma forma quem for ler o texto a seguir. “Wham!”, o documentário que se estreia na Netflix esta quarta-feira, 5 de julho, é obra do Aluno A, o que, numa era de overdose de informação, inovação, ChatGPT e afins, não é minimamente aceitável.
A história começa no momento em que Georgios Panayiotou e Andrew Ridgeley se conhecem na escola, aos 12 anos. A partir daí, a viagem é guiada pelas vozes dos próprios, através de excertos de entrevistas antigas daquele que viria a ficar conhecido como George Michael e de depoimentos mais recentes de Ridgeley. A fórmula parece ótima, ninguém melhor do que os intervenientes para recordarem o percurso até ao topo, mas não chega. Tirando o pai de Michael, que é repescado através de uma entrevista antiga durante uns míseros segundos, não há qualquer outro contributo.
São mostrados recortes de jornais que a mãe de Andrew Ridgeley colecionou desde o início da carreira dos Wham! e isso serve de linha temporal para guiar o espectador. Há vídeos inéditos e imagens de arquivo mas, à medida que o documentário se vai aproximando do final da hora e meia, o sentimento de deceção vai igualmente aumentando. Podíamos chamar-lhe “resumo dos Wham! para totós”. Para quem não acompanhou a banda quando ela estava no ativo — eu incluída — é uma sinopse simples e eficaz. Mas, “e mais?”, “é só isto?” — foi literalmente o que escrevi nas minhas notas. Ninguém quer perder 1h32 para ficar com a mesma informação que pode encontrar em qualquer resumo do Google.
[o trailer do documentário “Wham!”:]
O detalhe mais tocante do documentário é a forma como Andrew e Yog (era assim que George Michael era tratado pelo amigo) falam um do outro. Os Wham! não se separaram por desavenças, simplesmente os dois miúdos de 12 anos cresceram de forma diferente e tinham claramente aptidões e sonhos muito distintos. O projeto da Netflix deixa claro que não havia inveja ou ciúme. Andrew sabia que George Michael era o criativo, o poeta, o artista que ele nunca seria — e também não tinha desejo de ser. Em contrapartida, se não tivesse existido a desenvoltura e a confiança de Andrew, George Michael provavelmente nunca teria tido a coragem de enfrentar o medo do palco — ou, pelo menos, não tão cedo. Era um jovem profundamente inseguro, fechado num armário do qual quis sair, mas foi desencorajado. Dois melhores amigos que puxaram um pelo outro atrás de um sonho comum, a música — se, e só se, nos contentarmos com essa história de superação e conquista, talvez o filme valha a pena.
É o típico sonho impossível que acaba por tornar-se realidade. Dois miúdos, ainda com problemas de pele e demasiadas más escolhas capilares, vão de um extremo a outro à velocidade da luz. Das portas das editoras discográficas fechadas às tournées em discotecas decrépitas, passando por um contrato assinado que não lhes garantia absolutamente nada — quando os Wham! já enchiam concertos e ocupavam os primeiros lugares dos tops de vendas, continuavam de bolsos vazios e a dormir em casa dos pais.
Os primeiros temas que compuseram, “Careless Whisper” e “Club Tropicana”, não foram logo um sucesso, pelo contrário. Porém, acabariam por explodir anos mais tarde. Quatro anos é um período curto mas chegou para, entre 1982 e 1986, conseguirem arrastar multidões (no Reino Unido, na China e nos EUA) e produzirem canções que se tornaram icónicas, como “Wake Me Up Before You Go-Go” e “Last Christmas” e que têm as respetivas histórias. A primeira, por exemplo, partiu de um bilhete deixado por Andrew a Yog numa manhã como outra qualquer. “Como percebi que me tinha enganado e tinha escrito ‘Wake me up up before you go’, acrescentei outro ‘go’”, explica Ridgeley. Michael fez o resto da magia, tal como aconteceu com o segundo tema, que registou em minutos num gravador portátil. Se no videoclip os intervenientes parecerem algo alcoolizados, é porque estão.
A narração do documentário é um pingue-pongue entre George Michael e Andrew Ridgeley, como se ambos estivessem a conversar. Flui com naturalidade mesmo que saibamos que não estão efetivamente a dialogar. Os Wham! eram eles, mas não eram só eles. Ainda que com um papel muito secundário, de bailarinas e vozes de coro, Shirlie Holliman, Dee C Lee e Helen “Pepsi” DeMacque fizeram parte dos Wham!. A primeira era, inclusive, muito próxima dos dois amigos. Se o documentário da Netflix é sobre o grupo, porque é que elas não foram entrevistadas? Quem são, de onde vieram, o que lhes aconteceu? Podiam ter tanto a acrescentar sobre o percurso, os bastidores, as conquistas e as dificuldades deste turbilhão frenético vivido aos 20 e poucos anos.
George Michael já era um nome por si só ainda antes do fim dos Wham!, mas era também um sex symbol cobiçado por mulheres, uma personagem que foi deixando andar e alimentando, embora soubesse há muito que era homossexual. Nada disso o deixava dormir descansado, mas este tema, como todos os outros, é deixado à superfície, como se fosse apenas um fait-divers. A ideia do projeto é boa, mas rudimentar. E, se eu, que dos Wham! só conhecia os êxitos mas não a história, fiquei com esta ideia, imagino os verdadeiros fãs.
A banda separou-se em 1986 e é aí que o filme acaba, partindo do pressuposto que sabemos o que aconteceu depois ou se calhar que não nos interessa saber. A única referência à morte de George Michael é “em memória de” com a data de nascimento e de morte. E Andrew Ridgeley? Qual foi o seu percurso pós-Wham!? O documentário não diz. E olhem que a resposta até está na Wikipedia.