“Tudo que escrevi na vida passou por um lugar de eu conseguir falar para a pessoa, no texto, o que não consegui na hora. Acho que o meu texto é um pouco um lugar de vingança, para mim”. As palavras são da autora, podcaster, guionista e cronista Tati Bernardi, numa entrevista à edição brasileira da revista Marie Claire, em 2022. Uma das vozes mais cáusticas do país irmão, Bernardi é celebrada e cancelada em doses semelhantes, mas parece sempre viver (e, acima de tudo, escrever) sem sentir o calafrio da espada que decreta o que pode ou não dizer — seja em relação a política (é uma anti-bolsonarista convicta e muito vocal), seja em relação a todos os que a rodeiam. Amigos, familiares, colegas de trabalho, amores passados ou presentes, meros transeuntes ou convidados de um mesmo jantar, todos podem ser atropelados pela habilidade da escrita de Tati. Todos podem habitar o tal lugar de vingança. “A única pessoa que não tenho prazer em expor é a minha filha”, reforçou na mesma entrevista.

Homem Objeto, agora editado por cá pela Tinta da China (a mesma que nos trouxe livros de crónicas de outro extraordinário contemporâneo de Bernardi, António Prata), saiu originalmente no Brasil em 2018. Cinco anos volvidos, muita coisa mudou. No mundo e na vida da própria autora, já que não só se tornou numa figura mais pública e escrutinada (em muito devido ao podcast Calcinha Larga, um sucesso avassalador que terá terminado, alegadamente e com polémica à mistura, por Tati e as outras duas hosts, Camila Fremder e Helen Ramos, se terem incompatibilizado) como também o marido referido repetidamente nestas crónicas é agora ex-marido. É logo sobre ele o texto que abre o livro, chamado Meu marido joga video game, um dos vários ensaios sobre a infantilidade no género masculino. Mais à frente, noutro texto, recorda: “a Maria, que trabalha para mim há quinze anos, esquece mais de metade do que eu lhe peço na feira, mas, se acabar o ovinho que ela faz no café da manhã para o meu marido, fico aturando o ‘tadiiiinho’ ecoando pela casa. ‘Como ele vai sair pro trabalho sem o ovinho?’ Pensemos aqui na origem das palavras ‘coitado’ e ‘chocada’ usadas no texto”.


Título: “Homem Objeto”
Autora: Tati Bernardi
Editora: Tinta da China

Páginas: 216

O nome do livro remete para outra das crónicas, mas não deixa de ficar a pergunta: se é um homem objeto, que objeto é esse? A capa (sempre muito bem conseguida) da edição da Tinta da China avança com uma hipótese: uma chave de fendas, que tanto pode ter a interpretação do homem como um utilitário, como alguém que faz tarefas específicas na casa ou simplesmente pelo lado fálico.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O título escolhido dá, assim, a entender que os homens são o grande tema das crónicas. E são, de facto, um tema recorrente, do ex-namorado ao chefe assediador, do primo bolsonarista ao empreiteiro das obras. Mas Homem Objeto é mais sobre as ambivalências de ser mulher no mundo atual e sobre a complexa teia de relações (amorosas, familiares, sexuais, profissionais, sociais, até internas) que daí resultam. As contradições são assumidas pela própria autora, que oscila entre o feminismo e a valorização do macho à antiga, entre o empoderamento e a disponibilidade para mudar tudo em si para se ser mãe.

Tati Bernardi e a psicoterapia para o povo em tempo de pandemia

Nem todos os textos de Homem Objeto terão passado incólumes do processo infame de “envelhecer bem”. Como acima mencionado, de repente cinco anos é estranhamente muito tempo e muita coisa muda. Mas esse é até um dos méritos do livro, já que a autora nunca nega os seus defeitos, imperfeições, falhanços e contrassensos. Talvez até já nem se reveja em algumas coisas ou talvez se mantenha firme nelas, navegando polémicas como está habituada. Na verdade, nada disso importa. É uma reflexão com falhas? Não faz mal, Tati Bernardi beija-as na boca.

A edição portuguesa é em tudo semelhante à original da Companhia das Letras, o que é uma pena. Faria falta um prólogo mais atual e algumas notas a contextualizar pequenos detalhes que potencialmente escapam a quem não é brasileiro, como os bairros e estabelecimentos mencionados ou apenas o facto de que “roupa PP” é aquilo que por cá chamamos roupa de tamanho XS.

Tati Bernardi: “Tinha muito medo de escrever este livro, que a minha mãe ficasse brava comigo. E ficou”

“Tenho um amigo que dá um curso de crónica, o Fabrício Corsaletti. Ele divide os cronistas em líricos e demolidores, uma coisa assim. E ele fala que sou do tipo demolidor”, disse Bernardi à Marie Claire. O que Tati vai demolindo aqui são as expectativas de cada um de nós tem para as diversas situações e o modo como as transformamos em máscaras sociais. Por isso, os temas são variados: gravidez, a quem mandar uma nude que saiu inspirada, mentirmos acerca de não gostarmos de shoppings, a gourmetização dos médicos de especialidade, a falta de pachorrra para festas, sobre como é melhor acabar por mensagem do que ao vivo, o desejo irracional por brindes e amostras, comparar-se a uma mamã panda. Há de tudo, mas sempre escrito com honestidade, graça e uma voz muito própria. Quem nos dera em Portugal ter uma mulher cronista assim a ser publicada regularmente.