Aos 88 anos, Pitum Keil Amaral “volta a atacar”, quatro anos depois de Crónicas da Província para Arquitectos e não Só, que aqui tivemos o enorme gosto de recensear. A primeira constatação é a ausência dum plano editorial consistente que permita tornar públicos, em pouco tempo, todos os escritos deste arquiteto, filho, neto e bisneto de grandes talentos culturais reunidos desde 2020 num museu municipal de Viseu que tem o nome da família Keil Amaral. E se o digo para ele, não menos o direi para seu pai, Francisco Keil Amaral (1910-75), autor do admirável Histórias à Margem dum Século de História (Seara Nova, 1970) que, ao menos, aquele museu haveria de poder vender para perfeita ilustração dos seus visitantes sobre a singularidade da estirpe — além de outros livros de Francisco pai que fizeram época, como A Arquitectura e a Vida (Cosmos, 1942) e Lisboa: uma Cidade em Transformação (Europa-América, 1969). Há sempre grande benefício em compilar trabalhos de uma vida inteira, para nosso conhecimento e a valorização de quem aqui esteve antes de nós ou de quem ainda está e não merece ser esquecido nem subestimado. Porém, as editoras portuguesas — apesar de alguns progressos — estão longe de manter aceso em permanência o cânone cultural.

Pequenos livros são aproximações a conta-gotas, ainda que bem deliciosas, como é o caso presente. Mas fazem querer a garrafa toda.

De 1955 a 2022, prolongando uma tradição familiar, Pitum Keil Amaral enviou a amigos cartões natalícios com desenhos de sua mão, “cartões muito pessoais, que acompanharam uma época, e uma vida inteira, sempre com um lugar no coração para os amigos e um olhar para o que nos envolvia” (p. 12). “Ganhei gosto por esta forma de comunicação simples e não dispendiosa de dar conhecimento sobre o que era feito de nós e como a vida familiar nos ia correndo, ou a saúde nos “tratava”. […] Mas o mais importante era ser uma lembrança sincera, e um sinal de optimismo e ânimo, com boa disposição, que são coisas de que toda a gente necessita” (p. 17).


Título: “Boas Festas. Precisamos delas a vida inteira”
Autor: Pitum Keil Amaral
Editor: Argumentum
Páginas: 104

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Como é sabido, humor nunca falta aqui, e mesmo assim — mas tão ingenuamente prevenidos… — somos surpreendidos: “Não queria falar dos aspectos menos agradáveis da questão mas, mesmo economizando graças à elaboração caseira dos cartões, sempre há que considerar os envelopes, os selos postais, papel, fotocópias, tinta, etc. — Um valor que, acumulado ao longo de tantos anos, e posto a render, daria para pagar, por exemplo, um obituário de muito nível, num bom jornal!” (p. 19). Outro exemplo: o cartão de 1962 é fotográfico, e encena o nascimento dos filhos gémeos de Leonor e Pitum. A legenda diz: “Quando existe uma tendência para o humor numa família, parece que a natureza se diverte, também ela, à nossa custa… — Deu-nos assim dois “meninos Jesuses!”” (p. 28). Em 1996, a “vida pacata na província” tornou o casal tão redondo, que ambos se figuram como bolas na árvore de Natal… (p. 64). Em 2016, uma montagem fotográfica traz a mensagem “Leera & Pitrump wish you a lovely 2017, and continue to try making Canas do Senhorim great again”, e o comentário “O humor parece ter desaparecido daquele país, contaminando até o mundo todo” (p. 97)! A um canto do monumento à família feito em 1985 — “et cum crisis aflicta est!”, e “para ficar mais solene e clássico até o escrevemos em latim” — lêem-se os votos para o novo ano: “Et maximum possibilis felicitatis OK?”…

Em 1967, quando trabalhava no Funchal, Pitum fez bons desenhos para o jornal Comércio do Funchal (mais tarde, ilustraria o velho Elucidário Madeirense, 1969-70), mas foi nos afamados Estúdios Vicente, “com os seus belos cenários para fundo, e variados adereços” (p. 32), que fez fotografar a família em vestuária d’antigamente: “Juntámo-nos aqueles que lutavam para tornar museológico este espaço excepcional.” E o devido comentário não se fez esperar: “Muitos anos depois (ou não estivéssemos em Portugal) isso foi conseguido!” (p. 33). A crítica ao país aparece amiúde: em 1977, por exemplo, sobre uma fotografia do célebre programa televisivo A Visita da Cornélia, vem o diálogo “Ah! Que ano tão fatigante! — O próximo será melhor, verás… Com mais saúde, mais alegria, mais governos!” (p. 43). Em 1981, em Moçambique desde 1978, Pitum usou cartões com bela gravura colorida de desfile popular, “souvenir da velha pátria encontrado no lixo”, entre “muitos vestígios que havia do tempo colonial”, para avisar os amigos de que “Por aqui tudo bem. A malta vai crescendo (alguns até excessivamente!)” (p. 47). Em 1987, “ano dos descobrimentos portugueses”, porém “hoje mais comezinhos”, uma figura que faz parte do contorno do mapa continental diz “Descobri a maneira de sacar todo o dinheiro que quero à CEE” e, outra, “Descobri que o ordenado já só chega até ao dia 14” (p. 52). No ano seguinte, Pitum desenha-se frente ao espelho antes de se barbear, enquanto “português médio dialogando com um pincel acerca dos novos impostos” (p. 53). Pais natais fazem manifestações com cartazes de “Boas Festas, sim – Desemprego, não”, ou são vistos, com a vaca e o burro bíblicos, na longa fila à porta dum centro de emprego (1993 e 2012, pp. 59 e 91). O cartão de 2004 duvida: “Será que este país tem conserto?” (p. 77).

A atualidade decide, muitas vezes, as escolhas anuais. A “aparente contradição” entre o aquecimento global e o “frio, frio, frio da Beira Alta” serve de tema ao cartão de 1997. Dez anos depois, uma brigada da ASAE apreende toda a carga do trenó do Pai Natal que, noutro desenho, desconsolado, Pitum e Lira amparam como podem: “Vamos lá… Anime-se! Há coisas piores. Tome um cafézinho… — O mais importante é termos amigos e pensarmos neles!” (p. 83). Em 2000, marcado pela BSE, o desenho — com a legenda “Horror no presépio”… — que passa no televisor mostra Maria, José, Jesus e o burro receosos da vaca enlouquecida, de língua de fora (p. 71). Em Outubro de 2011, Pitum teve um enfarte. “Quis deter as minhas graças, mas o Serviço Nacional de Saúde era ainda mais sério e não deixou”, comenta ele agora. Diz-lhe Lira num bonito desenho: “Espera, querido! Não te vás abaixo agora. Olha que ainda havemos de fazer muito humor com a crise…” (p. 88). E fizeram, de facto: em 2020, ano da Covid-19, “em que as esperanças oferecidas ao presépio não convenciam sequer o burro nem a vaca!”, um chinês, um saudita e um eurocrata, quais reis magos de máscara, trazem as suas salvíficas oferendas, mas o menino Jesus exclama: “Eu só queria um ursinho de peluche…” (p. 101)!

O acréscimo de guerras na cena internacional torna-se presença regular nos cartões  de boas festas: “Saúde, felicidade e paz (ou é pedir muito?)”, 1990. “O mundo agita-se em horríveis convulsões” — tac tac tac, pof, pum, crac crraac, plim, pif — no cartão de 1994, mas quase trinta anos depois, há um claro desânimo no “cartão mais feio de todos” (sic), o de 2022. O casal, uma vez mais no sofá, diante do televisor, em que “seria preferível um ecrã negro”, diz isto: “Ao aproximar-se o fim da nossa estadia neste planeta, constatamos, com pesar, que a ambição, a violência e a estupidez humana não páram de crescer e de ameaçar o futuro!” (p. 103) — violentíssimo contraste com a esperançosa folhinha de 1986, com frase assinada por um pretenso Carl Zeiss (!): “Se o bem-estar de toda a humanidade ainda nos surge desfocado, na nossa óptica é paralaxe caminha” (p. 51). Ou até com o gráfico do cartão de 2011, com os indicadores económicos em queda livre, em que a nota explicativa diz: “Não, não é o que pensais. Trata-se de uma paisagem suíça” (p. 89)…

Que mais terá Pitum Keil Amaral na sua “arca”? Que um bom e generoso editor lhe bata rapidamente à porta, em Canas do Senhorim, são os meus votos para 2024.