Salvo melhor juízo, este é o melhor livro de Duarte Belo, de toda uma já extensa bibliografia (50 títulos, dos quais 26 em parceria, se as contas não me falham). Depois de ter feito um belo testemunho de homenagem a Orlando Ribeiro (1911-97) falecido meses antes, depois de ter feito uma viagem pelo país continental com José Mattoso (1933-2023) e Suzanne Daveau (1925-), em 2001, o fotógrafo andarilho como nenhum outro em Portugal publica agora, num único volume, dois ensaios visuais “em homenagem” a António Marcos Galopim de Carvalho (n.1931) e a Fernando Catarino (n.1932), respetivamente Terra Mineral e Terra Vegetal.

Este diálogo ou conversa com “os velhos” que ensinam e não devem ser esquecidos — enfim, este tributo intergeracional —, podia não fazer parte do programa pessoal de Duarte Belo — filho dum poeta estimado, que ele também revisita amiúde —, mas o facto de os tornar tão presentes ao longo dos anos, além da dádiva evidente, aponta-nos o ponto alto a que ele próprio se propõe levar o seu inventário imagético do território português, integrando-o numa tradição ou cânone que importa ter presente nos “dias de amanhã”. Na verdade, esta atitude não surpreende quem reconhece no seu trabalho o grande elogio de — e o zelo por — ancestralidades naturais e culturais, que as intervenções daqueles sábios nos ajudaram a conhecer e perceber. Porém, a postura de Duarte Belo afigura-se como rara ou pouco comum num país que, em muitos aspetos, tende a perder de vista o chão muito antigo que pisa e lhe poderia servir de “bússola”. E os nonagenários homenageados hão-de ver nele, além de um amigo bastante mais novo, presumo, também um herdeiro e um trabalhador incansável como eles o foram, no esforço de dar a conhecer — e a pensar — o território em que vivemos e ao qual pertencemos. “Nas suas respectivas áreas científicas, e no ensino, ambos desenvolveram um trabalho notável que hoje se define como uma referência e inspiração contínuas”, lê-se em Terra Mineral, p. 10, e tem uma variante em Terra Vegetal, p. 1.


Título: “Terra Mineral / Terra Vegetal”
Autores: Duarte Belo e João Abreu
Editor: Museu da Paiagem
Páginas: 153 + 167

Preço: 21,79 €

O livro-dois-em-um está desenhado como duas unidades acopladas, cabendo aos seus leitores decidir se começam pelo vegetal ou pelo mineral. Terra Vegetal tem cinco secções ou “conceitos”: Paraíso, Corpo, Vida, Classificação e Antropoceno. Terra Mineral também: Mapa, Arquivo, Movimento, Matéria e Desenho. Em cada uma, Duarte Belo entrelaça reflexões suas com citações de Galopim de Carvalho e de Catarino, à medida que desdobra dezenas de fotografias suas — escolhidas por João Abreu, seu parceiro no Museu da Paisagem — um pouco por todo o lado. Referências explícitas (local e data) são dadas em rodapé, mas essa vasta e curiosa geografia não surge — como seria bom que surgisse — indexada num índice final nem num mapa pontuado. Críticos mais exigentes gostariam, certamente, de ver de que bibliografia se extraíram os excertos textuais do geólogo e do biólogo, embora se aceite que isso daria ao volume um carácter “académico” que ele não se propõe ter. Em contraponto, o extenso portefólio — e que radical redução do que vimos na exposição homónima na Biblioteca Nacional —, tanto de um lado como do outro, traz-nos um descomunal inventário geológico e botânico: “Em espirais antigas, de memórias e significados perdidos no tempo longo, vislumbramos o universo inteiro” (Desenho, Vida Mineral, p. 125). “Esta folha — disse Fernando Catarino — está cheia de geometria, de química, de física, de quântica e de coisas que ainda nem sabemos para onde vão” (p. 27).

O acaso dos caminhos de pé posto —aquilo a que algures chama “territórios de pacificação” — deu, de facto, a Duarte Belo a possibilidade de um encontro com a mais inesperada variedade de formas naturais, modeladas pela erosão eólica ou líquida ou já marcadas pela mão humana, que ele regista nas suas deambulações por “um universo desconhecido que nos interpela” (Paraíso, Terra Vegetal, p. 15). Daí que uma das secções deste livro, intitulada “Corpo”, comece com a frase “Caminhar, habitar o movimento em relação com as múltiplas dimensões da terra. Manifestação de ordem em labirinto dinâmico. Uma máquina de criação de conceitos, interpretações e leituras, propostas para a construção do seu próprio sentido como entidade viva” (p. 47). Mas esse corpo é também o da matéria vegetal que, por vezes, se expande em raízes e ramos desgrenhados para lá do mais delirante capricho da imaginação humana (“o fascínio da ordem impossível em desenhos de indizível beleza”, p. 79), e da matéria mineral, que por vezes se torce ou estica — em sonhos, diria seguramente Raul Brandão… — como nas belas imagens da secção “Movimento”.

Face a uma “humanidade entre a guerra, a barbárie, e as mais sublimes obras de arte” (Antropoceno, Terra Vegetal, p. 135), pode dizer-se que o filho do poeta Ruy Belo encontrou, verdadeiramente, o seu caminho.

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