No filme policial, há sempre um detetive profissional ou amador, ou um polícia, que funcionam como os representantes e os guias do espectador na investigação e na boa resolução da intriga. Mas em Anatomia de uma Queda, de Justine Triet, que venceu a Palma de Ouro do Festival de Cannes (e que se estreia esta semana em Portugal), a realizadora francesa dispensa tais personagens. Não há um detetive a picar o ponto, e os polícias que aparecem são figuras secundárias, presentes apenas na cena da tragédia que está no centro da fita, na reconstituição da mesma na casa em que ela se deu, e mais tarde no tribunal. O que sucede aqui é que Triet vira-se para nós e diz: “Têm aqui, ao longo de duas horas e meia, tudo aquilo que sucedeu. Vocês são os detetives. Desembrulhem-se”.
[Veja o trailer de “Anatomia de uma Queda”:]
Tudo começa no chalé de montanha da família Voyter, perto de Grenoble, num dia de inverno com neve. Sandra Voyter (Sandra Hüller) é alemã, escritora produtiva e com vendas. O marido, Samuel (Samuel Theis) é francês, professor universitário e também escritor, mas sofre de bloqueio criativo. Os Voyter têm um filho pequeno, Daniel (Milo Machado Graner), um rapaz precoce que foi atropelado por uma moto aos quatro anos, ficou com graves problemas de visão e precisa de um cão, Snoop, para se orientar. Um dia, e depois de Samuel ter posto música muito alta, aparentemente para afugentar uma estudante que entrevistava Sandra para uma tese, é encontrado morto pelo filho e pelo cão, após ter caído da janela do sótão, ou cometido suicídio.
[Veja uma entrevista com a realizadora Justine Triet:]
No entanto, a polícia põe a possibilidade de ter havido homicídio, e Sandra é a principal suspeita. Acaba mesmo por ser formalmente acusada e levada a julgamento, tendo que contratar os serviços de um advogado amigo, e seu ex-namorado, Vincent (Swann Arlaud). E Justine Triet vai apoiar-se na estrutura tradicional e mais do que familiar do policial jurídico para fazer neste filme, não só a minuciosa “anatomia da queda” do título e que dá gás ao enredo, mas também a pormenorizada radiografia de um casamento seriamente deteriorado e que chegou ao fim da linha.
[Veja a conferência de imprensa do filme em Cannes:]
Em paralelo ao desenvolvimento da investigação policial ao caso, e ao desenrolar do processo em tribunal, a cineasta demora-se bastante mais do que é habitual a descrever e a esmiuçar, com vagar e todo o detalhe, o pano de fundo íntimo, conjugal, emocional e psicológico do caso, examinando a crescente degradação das relações entre marido e mulher e os seus motivos, e o respetivo impacto no ambiente doméstico e sobre o filho. E fá-lo multiplicando os pontos de vista, os ângulos de aproximação, as teorias de especialistas e os meios formais (uma das provas mais importantes é uma gravação áudio feita à socapa), para mostrar de quantos estilhaços contraditórios se compõe por vezes a verdade, como um puzzle em que faltam peças, e outras não encaixam. Uma estratégia ajuda também a quebrar a rotina narrativa do processo.
[Veja uma sequência do filme:]
Daqui resulta um filme complexo, elaborado, denso e muito movediço (Justine Triet também escreveu o argumento, em colaboração com Arthur Harari, o realizador de Onoda). Anatomia de uma Queda passa o tempo a mexer com as nossas expectativas e certezas (e não só: Sandra Hüller, para quem a fita foi pensada e escrita expressamente, andou a rodagem toda a perguntar à realizadora se a sua personagem era culpada ou inocente, e não obteve resposta), mantendo-nos na dúvida sobre o que realmente aconteceu mesmo até ao fim (e, para os mais desconfiados, talvez mesmo após a conclusão).
Hüller é formidável numa Sandra ora transparente, empática e fiável, ora misteriosa, antipática e suspeita, mas há que não esquecer o jovem Milo Machado Graner, impressionante de magnetismo e expressividade no papel do sensível, inteligente e angustiado Daniel, que mesmo profundamente afetado na visão, vai acabar por ter um papel decisivo para a decisão do veredicto e a resolução do caso — com a colaboração involuntária do fiel Snoop, a testemunha silenciosa de tudo. Mais do que sobre as razões da queda mortal que põe a ação em movimento, Anatomia de uma Queda é um filme sobre a cisão de um casal, que vai por sua vez provocar o colapso de uma família.
